A mão na obra: artesanato e arquitetura residencial em Lucio Costa

Marcelo Carlucci

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Entre 1922, data de seu primeiro projeto residencial, até 1988, ano em que projeta a residência Edgar Duvivier, seu último projeto, Costa percorre um caminho projetual ao mesmo tempo caótico e curioso: se por um lado defende em seus textos uma sucessão coerente de fases e períodos que perfazem uma linha do tempo bem concatenada, por outro lado, as imagens dos projetos delatam um repensar constante sobre seus pressupostos, como se, ao projetar distante da oficialidade e do compromisso profissional, como no caso, por exemplo, do edifício do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, Costa estivesse a incorrer em atos-falhos, num exercício projetual mais espontâneo e emotivo.

Ao ampliar a visada de Costa para os acontecimentos que marcaram o início de sua carreira, podemos identificar que o tema habitação esteve presente como pauta primordial nos debates intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século, não sem incursões constantes aos terrenos da moral, da ética higienista e do nacionalismo ufanista. Em maio de 1931 acontece em São Paulo o 1° Congresso Brasileiro de Habitação, onde teorias higienistas sobre a habitação concorrem com afirmações ético-morais e antropológicas sobre a casa, como se vê em alguns trechos dos Anais [1]:

“Na casa, à grande luz radiante do sol nascem, desenvolvem-se e amadurecem as forças que conduzem a humanidade para o progresso constante. No bar e no clube, em escuridão propícia à vida microbiana, pupulam forças contrárias”;

Sobre habitação popular:

“Trata-se de construir uma habitação e uma forma de morar que interdite as relações impuras, localizando o amor, codificando a sexualidade, eliminando tudo o que represente libertinagem, orgia, desordem e anarquia”;

Ainda, de forma mais ampla:

“A casa deve ser dividida em número suficiente de compartimentos para evitar a promiscuidade e os quartos suficientemente isolados uns dos outros como deseja a família brasileira, por tradição discreta e rígida moralidade”.

Mas o caminho percorrido por Costa, como arquiteto de projetos residenciais, avança pelas décadas seguintes partindo de um ecletismo de início de século com vias de se afirmar neocolonial até uma arquitetura por ele descrita como “contemporânea” exercida em seus últimos anos de vida, quando se ocupa ainda da construção de duas casas no Rio de Janeiro: residência Helena Costa (1980-1982) e Edgar Duvivier (1985-1988).

Uma arquitetura pouco interessante

O que precisamente salta aos olhos quando nos colocamos diante de uma obra de arquitetura cujo autor foi um os maiores teóricos da arquitetura brasileira não só moderna como, sobretudo, do legado colonial?  Espanto: não há nela nenhum elemento-surpresa, nenhum agenciamento de espaços e formas inusitadas ou um léxico plástico que lembre, por exemplo, o arrebatamento estético-emocional de Oscar Niemeyer ou a coragem técnico-discursiva de um Warchavchik. As formas são prismáticas e brancas sem serem exatamente puristas; as janelas simples e até convencionais; calcados em um repertório formal-construtivo básico, as coberturas se resolvem através das tradicionais águas de telha de barro. Tudo isso nos dá a impressão de “deja-vù”, de algo isento de criatividade e arrojo, casas parecidas com as que, até hoje, se repetem infinitamente nos bairros de melhor condição sócio-econômica das cidades brasileiras. Essa quase “não-arquitetura” – qualidade que somos tentados a atribuir-lhe num primeiro e superficial olhar – nos coloca mais dúvidas do que possíveis conclusões: há ali uma negação do mito da inventividade radical? Uma afirmação de que a obra de arte sempre é algo referenciada na produção anterior? Uma crítica à “essa preocupação de estar sempre atento a fazer coisas diferentes”? Uma atitude de retirada e exílio no passado frente a um presente onde se constata aridez e incompreensão?

Roberto Schwarz, ao empreender uma análise sobre o nacional na cultura brasileira, especificamente na literatura, detecta um aspecto da nossa vida intelectual bastante esclarecedor, por ele definido como “descontinuidade da reflexão”:

“Tem sido observado que a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar do zero. O apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da geração anterior, e a conseqüente descontinuidade da reflexão. (...) Percepções e teses notáveis a respeito da cultura do país são decapitadas periodicamente, e problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia corresponder. O prejuízo acarretado se pode comprovar pela via contrária, lembrando a estatura isolada de uns poucos escritores como Machado de Assis, Mário de Andrade e, hoje, Antônio Cândido, cuja qualidade se prende a este ponto. A nenhum deles faltou informação nem abertura para a atualidade. Entretanto, todos souberam retomar criticamente em larga escala o trabalho dos predecessores, entendido não como peso morto, mas como elemento dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâneas”. [2]

A atitude intelectual – e projetual – de Costa se alinham, nos parece, a esse grupo de intelectuais brasileiros elencados por Schwarz, para quem o passado se configura como base de formulação artística, pois tomado pela sua característica de algo irresolvido: o passo a frente, o novo, só se constrói se feita a ponte estrutural entre o novo e o velho. Longe de um reacionário tradicionalismo ou um passadismo derrotista e saudosista, Costa parece empreender um esforço em dar consistência artística e intelectual à sua produção pelo reconhecimento das contradições que dizem respeito à própria contemporaneidade, a saber, o constante atrito entre o velho e o novo.

Costa define seu projeto (casa para Helena Costa, 1980) em poucas palavras:

“Casa francamente contemporânea, mas com pinta e saudade do nosso passado. Casa brasileira – aquilo que o neocolonial não soube fazer”. [3]

Talvez seus últimos projetos residenciais podem ter sido respostas possíveis às questões então colocadas – o “vale tudo” de uma época apressadamente autodenominada pós-moderna onde a inventividade parecia querer romper definitivamente com a continuidade dos saberes adquiridos. Muito do olhar mais contemporâneo ainda tem algo desse desprezo gestado nessa época, o que, por vezes, influencia na classificação apressada das casas de Costa como manifestações sem um valor artístico considerável.

Da forma à sociedade

Sempre tendo no passado (nunca saudosista, romântico ou estereotipado, mas identitário) a bússola referencial de seus trabalhos e suas idéias, como, de resto, toda uma geração de intelectuais contemporâneos seus fizeram, Costa pensa o exercício da profissão como um compromisso cidadão de construir uma nova sociedade através de uma industrialização redentora, jamais opressora. Faz coro a uma reflexão mais profunda acerca do lugar da arquitetura na sociedade moderna, sua possível contribuição para o estabelecimento de um plano básico de valores humanos ligados, também, à questão habitacional.

Mas como separar texto e projeto ao tratarmos de um arquiteto que também foi urbanista, historiador, literato, filósofo e artista? Instâncias coincidentes, a natureza sensível do homem, expressa simplesmente pelo olhar, e a natureza intelectual, expressa pelas idéias textuais e abstrações teóricas, são os meios primordiais através dos quais se faz a arquitetura: o pensamento abstrato dá origem à forma; a forma é a expressão concreta de uma teoria ou de um desejo.

Portanto, discutir a forma ou o partido estético-formal em Costa nos obriga a alargar o uso corrente, e, por vezes, equivocado do termo “estética”. Se suas casas recorrem a um uso pouco exacerbado de linhas e formas é porque essa estética, a princípio tida como pobre e desinteressante, atua em outro registro:

“Os projetos de Lucio Costa reiteram uma necessária privacidade como forma de compensar os constrangimentos impostos pelo mundo exterior seja nos grandes centros urbanos, seja nos imensos espaços característicos da paisagem americana. Entre a natureza com sua mítica força originária e a civilização moderna com sua problemática sociabilidade, delicados movimentos se esforçam para não pender inadvertidamente para nenhum dos lados. (...) Diante desse impasse, os edifícios de Lucio Costa não se caracterizam pela exuberância formal, por um acentuado geometrismo ou pela afirmação expressiva dos componentes técnicos. A saída: erigir uma arquitetura de linhas definidas, com destaque para sólidos regulares, mas de feição sóbria. Nos projetos residenciais, por exemplo, as arestas do volume geométrico são atenuadas pelo telhado em águas e as aberturas estão sempre protegidas. Se os edifícios são formalmente acanhados é porque o embate expressivo nas obras de Lucio Costa ocorre em outra esfera: mais propriamente naquela dos procedimentos construtivos”. [4]

Em posição bem próxima a do arquiteto Sérgio Ferro, para quem a alienação da forma em relação ao processo construtivo é um dos mais severos equívocos da arquitetura contemporânea, levando à fetichização [5], a Costa desagradam profundamente os padrões de impessoalidade e anti-subjetividade impostos pela técnica construtiva moderna. As técnicas artesanais de construção se colocam, então, como um contraponto saudável a esse mal, restabelecendo o sentido humanístico do artefato e deixando na obra a mão daquele que a produziu: o marceneiro, o carpinteiro, o azulejista, o assentador de pedras, o pedreiro, todos participantes ativos do ciclo de produção.

O “discurso sem palavras” que Costa estabelece através de seus projetos se traduz muito mais através do procedimento do que pelo resultado final. A forma é resultante de uma escolha consciente do processo em que ela nasce: a janela-muxarabi utilizada em praticamente todos seus projetos residenciais desde 1922 até as casas da década de 80, com seus caprichosos desenhos e expedientes artesanais só é possível ser feita com a contribuição habilidosa de carpinteiros, vidraceiros e ceramistas, todos artesãos.

O homem e suas desventuras terrenas é o problema central em Lucio Costa, não o resgate simples e pueril do passado e sua adaptação às formas contemporâneas fossilizadas em uma arquitetura sem traço humano:

“O importante é resgatar pelo olhar a memória de um fazer que levava tanto a marca inconfundível do indivíduo quanto de uma relação de equilíbrio com a natureza. O passado representa, no caso, um índice crítico que nos faz lembrar reiteradamente a prevalência dos valores humanos numa época tecnicista, que tende a extrair do sujeito a possibilidade de exprimir-se criativamente, impondo um mundo artificial regido por valores abstratos. Lucio Costa defende, em última instância, a pertinência da arte como depositária dos mais altos ideais”. [6]

Entendidos como forma de expressão livre e descompromisada, seus projetos residenciais comunicam, enquanto textos-não verbais que são, a inevitabilidade de se “des-fetichizar” a arquitetura, ou seja, não tomá-la ou interpretá-la apenas pelo aspecto externo através do qual se manifesta num primeiro momento; é preciso aproximar o olhar e refletir sobre o detalhe e sobre a dinâmica de sua produção: isso é também, e fundamentalmente, arquitetura. As casas de Costa não só partem de um pressuposto básico de contemplar valores e sentimentos afetivos do usuário realizáveis no âmbito doméstico – recato, intimidade, aconchego, descanso, etc. – como se colocam como verdadeiros manifestos éticos sobre a forma do ser humano ser e estar no mundo: o cubo branco e suas variações pode ser um suporte adequado à moradia do homem moderno, conquanto a ele estejam anexas a humanidade das treliças, das varandas, do pátios e das madeiras e azulejos.

Se a análise precisa de sua obra pode ser um trabalho inconcluso, Costa, por sua vez, arriscou uma conclusão ou um resumo de si mesmo:

“Não sou capitalista nem socialista, não sou religioso nem ateu, – acredito simplesmente na minha velha teoria das resultantes convergentes. E como a natureza visível, ao alcance dos sentidos, e a natureza oculta, ao alcance da inteligência, são, no fundo, a mesma coisa, entendo que o desenvolvimento científico e tecnológico, livre de peias, não pode ser contra o homem, porquanto, transcendência ou imanência, o ser humano, com seu drama existencial – gênio, vagabundo ou santo –, é a peça chave, o remate da Evolução. Evolução ou jogos infinitos do acaso, como preferem alguns, na imensidão desses espaços aqui como alhures sem princípio nem fim, esfera, como já foi dito, cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma – “nulle part”.[7]

Talvez as casas sejam testemunhos de que essas palavras não se constituam mera retórica em um bem escrito estilo de prosa: unificando forma e pensamento e focando precisamente a História como trama de um personagem solto no tempo – “nulle part” –, Costa permanece como uma referência indesviável em reflexões acerca dos rumos da arte e da arquitetura no mundo contemporâneo; se não se sabe aonde chegar, há pistas confiáveis de onde partir.

Notas

[1] Anais do 1° Congresso de habitação. São Paulo. Maio de 1931. São Paulo, Lyceu Coração de Jesus, 1931.

[2] Roberto Schwarz. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 30-31.

[3] Lucio Costa. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das artes, 1995: p. 226.

[4] João Massao Kamita. “A lírica construtiva de Lucio Costa e Volpi”. In: NOBRE, Ana Luiza; KAMITA, João Massao; LEONÍDIO, Otávio; CONDURU, Roberto (orgs.). Lucio Costa: um modo de ser moderno. São Paulo: Cozac & Naify, 2004, p.262.

[5] Sobre a arquitetura de Lucio Costa Sérgio Ferro comenta: “O Lucio é muito mais atento ao construtivo, é muito mais atento à produção imediata. A forma do Lucio, sempre aparentemente tímida, simples, sem arroubos transcendentais, me parece muito mais próxima do primeiro projeto dele (de construção da realidade nacional baseado em condições próximas, na evolução do que está ali), do que a utopia do Niemeyer”; e continua: “Na arquitetura de Lucio, na forma que ele utiliza, há respeito aos elementos mais simples: a correção de uma alvenaria, de um pilar, de uma viga, no emprego de tais e tais materiais. E essa correção técnica, que exalta uma certa mão operária, no Lucio, pouco a pouco vai avançando, vai se transformando no fundamento mesmo da linguagem dele.” Depoimento de Sérgio Ferro in Motta filho, geraldo (org.) O Risco. Lucio Costa e a utopia moderna. Bang Bang filmes. RJ: 2003, p.124.

[6] João Massao Kamita. “A lírica construtiva de Lucio Costa e Volpi”. In: Lucio Costa, um modo de ser moderno. opus cit. p. 264.

[7] Lucio Costa. Citação em contracapa. In: Registro de uma vivência, opus cit.