ARQUITETURA E DIVISÃO DO TRABALHO [1]
Prof. Dr. Paulo Bicca [2]

Transcrição: Felipe Gontijo
Revisão e notas: Silke Kapp

Boa tarde a todos. Muito obrigado pelo convite que me foi feito, em particular à professora Silke [Kapp] por me dar a oportunidade de estar aqui com vocês, retornar a Belo Horizonte depois de alguns bons anos, ver esta cidade que muito me apraz e ter a possibilidade de conversar sobre um assunto que me é bastante caro e que, espero, possa sê-lo também para todos os que aqui estão. Comecemos de imediato com o tema das relações entre a produção da arquitetura e a divisão social do trabalho, conforme está nomeado no nosso programa.
O professor francês de filosofia François Châtelet [3], em um de seus livros, trata da questão da ideologia – tema, aliás, recorrente e comum aos espíritos filosóficos –, afirmando que o discurso ideológico é um discurso coerente. Também a professora brasileira de filosofia Marilena Chauí [4] trata da ideologia e do discurso ideológico em vários de seus livros. E ela também afirma que o discurso ideológico se caracteriza pela coerência, mas não se limita a isso. Ela sublinha igualmente o fato de o discurso ideológico ser um discurso lacunar, um discurso que tem vazios, não-ditos. As lacunas, os vazios, do ponto de vista da professora Marilena Chauí, são características inerentes ao discurso ideológico e, além disso, diretamente relacionadas à já destacada coerência. Ela diz que o discurso ideológico é coerente não apesar das lacunas, dos vazios, dos não-ditos, mas que a coerência do discurso ideológico depende justamente dessas suas lacunas. E ela diz mais: sempre que preenchemos essas lacunas, esses não-ditos, esses vazios, não apenas eliminamos a aparente coerência do discurso ideológico, mas eliminamos esse discurso enquanto ideológico. Ou seja, repito, lacunas, não-ditos, interditos, são condição necessária à existência de um discurso que possa ser classificado, como o fazem Châtelet e Marilena Chauí, de discurso ideológico coerente.

Por que digo isso? Porque, de certa forma, e sem nenhuma pretensão que não a de dirigir à arquitetura um olhar diferente do comum, a minha intenção aqui é preencher os vazios do discurso ideológico que normalmente acompanha a produção da arquitetura e caracteriza o que nós, arquitetos, dizemos sobre ela e o script que os historiadores de arquitetura produzem. Certamente esses vazios, essas lacunas, esses não-ditos têm um significado muito importante, porque estão associados a algo que não se poderia ou não se deveria dizer.

Nesse contexto, gostaria de lembrar dois termos da teoria freudiana: o conceito de denegación ou renegação, conforme se costuma dizer em português, e o conceito de racionalização[5]. O que está por trás desse conceito renegação, que ajuda a enxergar, entender, explicitar um determinado tipo de comportamento? Por renegação Freud entendia aquele comportamento que nega a existência de alguma coisa que de fato existe, porque, ao reconhecida sua existência, essa coisa nos causa um profundo desconforto, um tremendo mal estar. O melhor para nós é ignorar a existência daquilo que é incômodo e desconfortável. Há, portanto, esse mecanismo inconsciente que se poderia chamar de mecanismo de defesa, que Freud chama de renegação. Costumo dizer que trata-se de uma atitude como aquela do avestruz. Diante do perigo, dizem que o avestruz enfia a cabeça num buraco, e aí, como não enxerga mais o objeto que lhe causa medo, é como se aquilo deixasse de existir. Não que o objeto tenha sido eliminado, mas, como deixa de ser visto, deixa de causar aquela sensação incômoda, de desagrado ou medo. E a expressão racionalização? Freud diz que tendemos a construir uma representação ou um discurso que poderia ser chamado de racional ou racionalizador, para tornar palatável ou aceitável algo cuja existência é difícil admitir, algo que nos causa sufoco e coloca em xeque nossos valores e nossa maneira de ver a realidade. Para suportar a convivência com esse algo, tentamos explicá-lo racionalmente. Freud chama isso de discurso racionalizador.

Por que eu estou fazendo toda essa introdução? É que nosso discurso, enquanto arquitetos, a respeito da produção da arquitetura tem muito de discurso ideológico, e tem muitos vazios, lacunas e não-ditos. Na realidade da produção arquitetônica da qual nós, arquitetos, participamos, existem coisas que seria bom que não existissem. Portanto, criamos um processo de renegação, para ignorar a existência disso. Ou então construímos um discurso racionalizador que torna aceitável aquilo que, sem esse discurso, sem essa representação, não o seria. Justificamos a existência de uma dada realidade para tornar a convivência com ela menos difícil.

E onde está essa realidade que não costumamos explicitar quando tratamos das questões concernentes à arquitetura e à sua produção? Eu diria que ela está na presença profundamente incômoda, no mínimo constrangedora, da divisão social do trabalho, sobretudo quando ela se manifesta enquanto divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Uma divisão que separa mas também opõe, no interior de uma relação contraditória, aqueles que concebem e projetam a arquitetura e aqueles que a executam, a constroem, lá no chamado canteiro de obras. Isso se entendermos – e não há outra maneira, me parece – a produção da arquitetura como uma produção que se dá necessariamente a partir do trabalho humano; e se considerarmos – e não há como deixar de fazê-lo – o trabalho humano na sua forma originária, como o considerou Marx[6], enquanto relação entre o homem e a natureza que lhe é exterior. Trabalho humano é ação desenvolvida pelo homem sobre a natureza, para transformá-la, dar-lhe uma forma útil, produzir algo que irá satisfazer as necessidades humanas.

Marx chama atenção para o fato de que, na origem, o trabalho humano já se dá como trabalho inteligente, e não instintivamente. O que ele quer dizer com isso? O homem primeiro concebe na sua cabeça a idéia daquilo que depoisa irá realizar por meio do trabalho. A maneira primária da existência do trabalho humano coloca em relação dois fatores inalienáveis: o homem agindo sobre a natureza por ele transformada mediante o trabalho. Mas Alfred Sohn-Rethel[7],um alemão estudioso de muitas coisas, em particular das organizações sociais e da divisão social do trabalho, diz que, a partir de um dado momento, a questão essencial é saber na cabeça de quem se encontra idealmente presente o resultado perseguido pelo processo do trabalho. Marx responde a essa pergunta referindo-se a uma situação em que já não se trata apenas da relação do homem com a natureza, mas em que há grau de complexidade muito maior, com contradições outras que não apenas o antagonismo homem-natureza; uma situação em que homens distintos participam de maneiras distintas de um mesmo processo de trabalho. Nessa situação, bem o sabemos, há muitos processos em que se dá a separação entre aquele que idealiza o processo de trabalho, concebe na sua cabeça o resultado a ser obtido, e aquele que, efetivamente, pela ação de suas mãos, braços, pernas, enfim, do seu corpo, transforma a natureza e lhe dá aquela forma idealizada – no caso, idealizada por uma outra cabeça. Enquanto o processo de trabalho é individual, diz Marx, a cabeça e a mão estão unidas; o processo reúne trabalho manual e trabalho intelectual. Mais tarde, essas duas partes do trabalho humano se separam numa contradição antagônica.

Por que isso diz respeito a nós, arquitetos, envolvidos com a produção da arquitetura? Se olharmos a arquitetura pelas características de sua produção e considerando aquela divisão social entre trabalho intelectual e trabalho manual à qual Marx se refere, encontramos que determinadas arquiteturas se produzem sem divisão social do trabalho, ou seja, com homens pensando e agindo sobre a natureza integralmente e produzindo como resultado um objeto que pode ser denominado arquitetura. Mas, a partir do momento em que a divisão social do trabalho se estabelece, surge também uma produção da arquitetura com essa divisão. E como é nossa relação com essas duas arquiteturas – uma produção que se deu mediante um trabalho não dividido socialmente e outra para a qual concorreu uma divisão social do trabalho? Costumo destacar que, embora a existência da arquitetura possa se dar sem que haja divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, a existência do arquiteto não pode. E se não há arquiteto sem que na produção da arquitetura haja divisão entre trabalho intelectual e manual, a existência do arquiteto não consegue ser real sem se fazer acompanhar – retornemos a Marx – de uma divisão que opõe de maneira contraditória e antagônica aqueles que participam da produção. A nossa existência, enquanto arquitetos, está indissociavelmente ligada a uma divisão social do trabalho que tem por condição inerente, ontológica, uma profunda contradição antagônica.

São Tomás de Aquino, no século XII, nos ajuda a entender essa relação entre o arquiteto e a divisão social do trabalho à qual estou me referindo. Numa tentativa de definição do arquiteto, ele diz: o arquiteto é aquele que concebe a forma do edifício sem, no entanto, manipular ele próprio a matéria. Numa linguagem escolástica, claro, ele diz algo que continua válido até hoje. O arquiteto é aquele que concebe o edifício – hoje diríamos, projeta o edifício – sem no entanto executar, manipular a matéria, transformar efetivamente a natureza naquilo que é a arquitetura. Acho que todos nós concordamos que, independentemente da qualidade da arquitetura concebida e a posteriori construída, essa a definição de São Tomás de Aquino continua totalmente adequada. Ela vai na essência daquilo que caracteriza efetivamente o arquiteto: alguém que concebe a forma do edifício e não manipula ele próprio a matéria. Mas eis a questão: sem manipulação da matéria não haveria arquitetura; poderia até haver projeto de arquitetura, mas arquitetura real – essa não existiria.

E como é que se estabelece – e isso São Tomás de Aquino não diz – a relação entre o arquiteto, que concebe a forma do edifício, e aquele que irá manipular a posteriori a matéria? Uns dois séculos depois, o grande teórico e um dos mais expressivos arquitetos do Renascimento, Alberti, completa a frase de São Tomás de Aquino, embora, que eu saiba,  Alberti nunca tenha lido ou referido São Tomás de Aquino (os homens do Renascimento não eram muito chegados à Escolástica...). Em todo caso, no início de seu tratado De re aedificatoria[8], Alberti diz que, antes de falar de arquitetura, esclarecerá o que entende por arquiteto. Tal esclarecimento faz parte da estrutura de seu discurso, sob muitos aspectos evidenciada pela professora Françoise Choay[9], que no entanto não salienta esse aspecto especificamente. O olhar de Alberti sobre arquitetura é o olhar do arquiteto; por isso, antes de chegar ao objeto arquitetura, ele precisa identificar com clareza quem falará desse objeto e o olhará com seu olhar próprio. E Alberti diz mais ou menos o seguinte: "não vos pedirei que chames de arquiteto aquele que trabalha com as mãos, muito embora aquele que trabalha com as mãos seja um instrumento do arquiteto". E ele segue dizendo – com São Tomás de Aquino – que o arquiteto é aquele que concebe o edifício, mas não manipula ele próprio a matéria.

De fato, se não existe arquitetura sem que a matéria seja manipulada, e se a matéria for transformada de acordo com a concepção do arquiteto, que não a manipula, então não há dúvida de que quem a manipula será um instrumento do arquiteto. Esse trabalhador realiza o que o arquiteto decidiu e idealizou, aquilo que está na sua cabeça, e não aquilo que porventura possa estar na cabeça do próprio trabalhador. Marx certamente chamaria isso de uma contradição antagônica entre dois trabalhos, entre as personificações de dois tipos de trabalho. Posto que separados, eles comparecem na produção da arquitetura como elementos contraditórios, conflitantes. Não há harmonia, há desarmonia. Não há acordo, há imposição. O conflito se dá entre aquele que tem condições de determinar como deve ser feita a arquitetura e aquele a quem não resta outra saída, que não executar a arquitetura tal como ela foi predeterminada.

Estamos diante do que alguns historiadores da arquitetura destacam – embora não aprofundem a questão, diga-se a verdade – como contraposição entre artes liberais e artes mecânicas. Sabemos que já durante a Idade Média havia se estabelecido essa diferença, que é uma forma de distinguir entre trabalho intelectual e manual. Entendia-se por artes liberais as atividades que tradicionalmente demandavam trabalho intelectual, e por artes mecânicas as que demandavam trabalho braçal, manual. Só que, durante a Idade Média, essa divisão não tinha ocorrido na produção da arquitetura da maneira como passa necessariamente a ocorrer a partir do Renascimento. Digo necessariamente porque a separação entre artes liberais e mecânicas foi condição para que a arquitetura ascendesse à categoria de arte liberal e os arquitetos, à de artistas liberais, totalmente separados das antigas corporações de ofício, das quais faziam parte os mestres de obra que realizaram, por exemplo, as catedrais góticas. [André] Chastel[10] e tantos outros, que estudaram a arquitetura do Renascimento sob esse viés, destacam a grande e significativa mudança que se estabeleceu a partir do século XV, quando a separação entre artes liberais e mecânicas se torna condição necessária à existência da arquitetura produzida pelos arquitetos de então.

É também a partir desse momento que adquire importância o projeto arquitetônico, e particularmente o projeto arquitetônico enquanto projeto desenhado. Por razões que se associam à organização do trabalho, durante toda a Idade Média a presença dos desenhos, dos projetos arquitetônicos ou da concepção arquitetônica representada sob a forma de desenho era significativamente menor e – mais importante ainda – significativamente distinta em sua natureza daquilo que passa a ocorrer a partir do Renascimento. Ao longo desse período, o desenho arquitetônico adquire a importância que ainda hoje lhe conferimos. E não é por acaso que Alberti, depois de falar do arquiteto, começa, no primeiro capítulo do De re aedificatoria – ou no primeiro livro, como era chamado – a falar sobre o desenho arquitetônico como qualquer coisa que vem antes da arquitetura, ou seja, do desenho como sinônimo de projeto arquitetônico.

O que é de fato o projeto arquitetônico? Talvez ainda hoje possamos dizer, com Alberti e à diferença de São Tomás de Aquino, que o bom projeto vai além da "forma do edifício". Quando concebemos um edifício temos a consciência de que devemos conceber algo que, no mínimo, tem de satisfazer aquela famosa trilogia vitruviana: firmitas, utilitas e venustas[11]; ou a também famosa trilogia de Alberti: firmitas, comoditas e voluptas. Firmitas diz respeito à materialidade de construção. Utilitas significa que deve ser uma construção que satisfaça as necessidades, que as abrigue da maneira adequada e cômoda – daí a expressão comoditas, usada por Alberti. E venustas ou voluptas significa que seja bela, agradável. Esses são três requisitos que se exige de uma boa arquitetura desde Vitrúvio, passando por Alberti, e parece que até hoje.

Mas essa visão do projeto arquitetônico, que se restringe a estabelecer relações entre a concepção e a coisa concebida, nos esconde algo que é intrínseco ao projeto enquanto feito por alguém que não manipula a matéria e que tem naquele que a manipula o seu instrumento. É que esse projeto arquitetônico não apenas expressa ou representa uma relação entre duas coisas – o projeto enquanto tal e a arquitetura enquanto tal. No projeto arquitetônico está embutida também uma relação entre dois trabalhos distintos: o trabalho intelectual, objetivado, materializado, expresso naquele conjunto de desenhos nos quais a concepção se consubstancia, e o trabalho manual, que manipulará a matéria no canteiro de obras, transformando-a de acordo com o que está prescrito no projeto por meio de desenhos e memoriais descritivos. Nós tendemos à fetichização do projeto. O que é isso? É dar ao projeto um caráter ou um predicado que ele de fato não possui. Quando abrimos uma revista ou um livro de arquitetura, é comum vermos – aliás eu diria que é só o que se vê – o desenho do projeto numa página e a imagem da obra construída na outra página, como se estivéssemos diante de uma relação que é tão somente relação entre projeto e coisa construída, entre projeto e, digamos, "cópia" do projeto. Esquecem que por trás dessa relação entre duas coisas – e aí está um dos não-ditos do discurso ideológico que produzimos sobre arquitetura – se esconde uma relação entre dois trabalhos, sem a qual essa arquitetura não teria existido. Eis a parte incômoda, que preferimos não revelar, mas que é condição da nossa existência enquanto arquitetos. Então escondemos a divisão do trabalho conflitante por trás dessas arquiteturas tão belas, tão geniais. Quando tiramos o véu, aparece algo não tão belo assim. Um projeto por nós concebido tem como função, portanto, não apenas determinar como deve ser o objeto arquitetônico depois de pronto, mas também determinar como se deve realizar o processo de trabalho a partir do qual o objeto arquitetônico resultará.

Que eu saiba, a primeira pessoa a falar sobre isso – até então ninguém havia falado e até hoje muito pouco se fala –  foi Sérgio Ferro, sobretudo no seu livro O Canteiro e o Desenho[12], cuja leitura recomendaria vivamente a todos vocês, pois é extremamente esclarecedora, embora não seja em si, digamos, prazerosa, porque revela coisas que costumamos renegar ou racionalizar. Sérgio Ferro entende o projeto como ordem de serviço, como expressão e materialização do trabalho de quem não espera uma contribuição inteligente daqueles que, no canteiro de obras, irão transformar a matéria em arquitetura. E o projeto é de fato isso. Inclusive o qualificamos como um bom projeto, não apenas por conceber e representar bem o espaço do ponto de vista da forma e da funcionalidade, mas por servir como instrumento eficiente para definir e orientar tudo aquilo que precisa ser realizado no canteiro de obras, para garantir que a obra resultante seja tal como foi concebida, sem diferenças significativas. Usa-se para isso o termo "racionalidade da organização do trabalho". Sabemos o papel que o projeto arquitetônico desempenha enquanto instrumento organizador do processo de trabalho e não apenas como instrumento no qual se representa a arquitetura enquanto vir-a-ser, ou seja, enquanto algo que acontecerá a posteriori e foi previamente representado nos desenhos.

Uma outra questão: há um autor, Bruno Zevi, que admiro bastante pelos vários livros que escreveu – desde o seu clássico Saber ver a Arquitetura, passando por Architectura in nuce, Linguagem moderna da arquitetura, História da Arquitetura Moderna, Arquitetura e judaísmo[13], onde faz uma análise bem interessante da arquitetura de Mendelsohn… Particularmente em Architectura in nuce, na parte intitulada "projeto em execução", Zevi incursiona um pouco por esses caminhos pelos quais estou incursionando aqui. Mas – e já disse que tenho respeito intelectual por Zevi – infelizmente acho que ele se dá conta de que por esse caminho corre o risco de chegar onde talvez não desejasse. Aí ele começa a desviar, começa a fazer certos malabarismos intelectuais para se desvencilhar de uma situação extremamente desconfortável, à qual ele próprio se conduziu quando resolveu tratar da relação entre projeto e execução. E ele destaca, entre outras coisas, que a única arte em que se dá essa separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, entre projeto e execução, para usarmos os seus termos, é a arquitetura. Na poesia, por exemplo, seria inimaginável que alguém delegasse a outro a elaboração de seus versos ou de seu canto, assim como seria em princípio absurdo que alguém fizesse o projeto de uma pintura e um outro a executasse. Até mesmo quando isso ocorre – às vezes ocorria nas escolas – aquilo que tem valor é o "projeto" da pintura, e não a pintura feita pelo estudante, pelo aprendiz. Na escultura pode acontecer algo semelhante ao que se observa na arquitetura quanto à divisão do trabalho – isso vale inclusive para aquelas maravilhosas esculturas feitas em metal pelo Amilcar, que certamente devem demandar uma mão-de-obra adicional ao seu próprio trabalho, porque as peças são de tal dimensão e peso que não poderiam ser manipuladas por um indivíduo só. Mas na escultura também há Michelangelo, que, como tantos outros, concebia e esculpia. Então a arquitetura é a única arte que, por suas características muito singulares, facilmente permite e até estimula que essa divisão se estabeleça; coisa que não ocorre na produção de uma pintura, de uma poesia ou mesmo de uma escultura.

Mas seria um equívoco e talvez uma racionalização, no sentido freudiano, procurarmos explicar essa divisão social do trabalho contraditória e antagônica como decorrência da complexidade do objeto arquitetônico ou mesmo como decorrência da complexidade da organização do trabalho. Não é verdade. As catedrais góticas se fizeram a partir de relações de trabalho muito distintas daquelas que hoje vemos como condição para que se faça até mesmo um abrigo de ônibus. Certamente nenhum de nós afirmaria que o abrigo de ônibus é mais complexo do que a catedral. Mas sabemos que, na maioria dos casos, hoje, alguém desenhou o abrigo de ônibus e outro o executou. Então a explicação para a existência dessa divisão tem que se buscar em outro lugar, não na complexidade do objeto, nem na complexidade da organização do trabalho. A explicação está na natureza da organização do trabalho da qual o arquiteto participa, cujas características principais são aquelas já definidas no século XII por São Tomás de Aquino, ou seja, o arquiteto é aquele que concebe a forma do edifício sem de fato manipular a matéria. O arquiteto é aquele que projeta o edifício, mas não transforma a natureza em edifício. E por mais brilhante que seja o projeto, por mais bem concebido do ponto de vista de utilitas, firmitas e venustas, se deixarmos no terreno o conjunto de pranchas que chamamos de projeto ou uma belíssima maquete – como somos capazes de fazer e como já as faziam os arquitetos no Renascimento – se deixarmos todo esse material no meio de um terreno, dali não nasce nada. É preciso que haja um trabalho adicional, que não somos nós que fazemos, como condição para que a arquitetura se realize. E aí se dá a contradição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.

Já estou um pouquinho adiantado e tenho esse mau hábito de começar a falar e não atentar para o tempo. Sei que temos que reservar talvez meia hora para discussão e não quero furtá-los disso. Era a minha intenção falar ainda algumas coisas que ajudariam na compreensão, mas talvez na hora do nosso diálogo – por enquanto está sendo um monólogo – possa retomar algumas questões, como, por exemplo, as tocadas por Vicenzo Scamozzi, em 1615, no seu trabalho A idéia da arquitetura universal[14]. E por que Vicenzo Scamozzi? Scamozzi dizia que nada o irritava mais na vida do que a não correspondência entre a idéia e a coisa construída ou, invertendo-se os termos, a não correspondência entre a coisa construída e a idéia. Nada o irritava mais. A coisa construída tinha que ser a cópia exata, perfeita da idéia expressa no projeto, nos desenhos. Lembrem-se, já estamos no século XVII. Os desenhos, sobretudo os desenhos de arquitetura a partir de Palladio, já tinham adquirido um grau de organização muito próximo daquilo que fazemos hoje. Palladio para mim é o inventor da forma moderna de projetar, de representar através de desenho não apenas a expressão do concebido mas o instrumento a partir do qual se dirige o que será construído.

Na medida em que a execução tem que se fazer observando, obedecendo, seguindo o mais precisamente possível aquilo que foi projetado, surgem algumas outras conseqüências. Temos que ter a capacidade de, através desse instrumento privilegiado que é o projeto sob a forma de desenho, expressar de maneira clara e sem ambigüidades tudo aquilo que queremos dizer àqueles que vão executá-lo. Retornando à expressão de Sérgio Ferro, esse desenho tem que ser uma ordem de serviço clara e sem ambigüidades. Isso acaba se refletindo na arquitetura, porque tendemos a limitar o objeto concebido à nossa capacidade de representação precisa e perfeita desse objeto com os recursos que o desenho fornece. Excluimos do nosso universo criativo todas aquelas formas que, de uma maneira ou de outra, apresentam dificuldades para serem correta e precisamente representadas no desenho.

Eladio Dieste, um uruguaio que eu não saberia como qualificar mas que talvez possa ser chamado de construtor, tem trabalhos maravilhosos em estruturas abobadadas de tijolo – ladrillos, como dizem os uruguaios. Ele concebeu formas excepcionais, como por exemplo uma capela na cidade de Atlántida que, para mim, é tão ou mais importante e significativa quanto Ronchamp, e tenho Ronchamp como uma obra excepcional. Gostaria até de prestar aqui uma homenagem a Dieste porque neste ano passam-se dez anos da sua morte[15], e é uma pessoa que precisa ser lembrada pelo que produziu de arquitetura e pelo que produziu de idéias sobre arquitetura e sobre o trabalho que concorre para a produção dessa arquitetura. Mas o que diz Dieste de interessante? Ele diz mais ou menos assim: "Ao perguntar a um amigo sobre a obra de Gaudí, ele me respondeu que não lhe havia interessado em nada. Isso não tem nada a ver conosco – ele disse. E como argumento final acrescentou: Eu não saberia como desenhar um edifício de Gaudí e como faríamos hoje uma obra sem plantas fachadas e cortes." De fato, para nós, arquitetos, a existência de plantas fachadas e cortes parece condição fundamental. Assim se exclui toda aquela arquitetura, possível de ser concebida e executada – tanto que as obras do Gaudí lá estão –, mas extremamente difícil de ser representada com nosso instrumento privilegiado de expressão, que é o projeto enquanto plantas, fachadas, cortes e tal.

É normal, é natural que nós retiremos do nosso universo de trabalho – em oposição à organização artesanal, corporativa do trabalho. Aldo Rossi, arquiteto que se tornou bastante conhecido pelo seu livro A arquitetura da cidade[16], tem um ensaio bem mais recente intitulado "A arquitetura da idéia"[17]. Não nos esqueçamos que, no Renascimento, quando se forja nosso conceito de arquitetura, usavam a expressão "arquitetura enquanto coisa mental" – "cosa mentale", arquitetura como idéia. Trata-se de uma visão idealista do ponto de vista filosófico, como se fosse a idéia que cria a realidade. É um pouco daquilo que chamei de fetichização do projeto, como se a arquitetura nascesse diretamente do projeto, como se a idéia se transformasse em algo real e concreto, sem uma ação efetivamente transforma o real. Essa visão filosoficamente idealista está muito presente na nossa ideologia, que vê a arquitetura como cosa mentale, como diziam os italianos no século XVI, e tenta retirar dela toda e qualquer presença do trabalho material. Cosa mentale: a arquitetura está associada à idéia, ao trabalho mental, e não ao trabalho que manipula a matéria. Este está excluído do discurso da representação da arquitetura. Não por acaso Aldo Rossi dá esse título ao ensaio, "A arquitetura da idéia".

Bom, já vimos que toda e qualquer coisa nasce da idéia, do trabalho inteligente. Sabemos que, como dizia Marx, o homem concebe antes na sua cabeça aquilo que depois fará, transformando a natureza. O trabalho inteligente difere do trabalho instintivo, pois se dá com o uso do pensamento que primeiro constrói idealmente aquilo que depois será construído realmente. Mas isso vale para qualquer coisa, vale para esta camisa, este copo. Enfim, toda e qualquer coisa resultante do trabalho humano, enquanto trabalho inteligente, pressupõe a presença da idéia no processo criativo de transformação da natureza.

Mas o que diz o Rossi nesse texto, por sinal bem recente? Ele diz que "o momento mais importante é precisamente a idéia da arquitetura. Somente quando se tem essa idéia na cabeça se pode desenhá-la." Ao estabelecer uma relação entre idéia e desenho, ele não está dizendo nenhuma novidade. Aquele que concebe um vestido ou um automóvel também deve ter uma idéia, e, se o processo de trabalho exigir um desenho, claro que esse desenho seria a expressão da tal idéia. Mas Aldo Rossi acrescenta: "O desenho é o método imediato de expressão de tudo o que é pensado." E isso já não é necessariamente verdade. No nosso caso, podemos pensar e expressar verbalmente sem a necessidade do uso do desenho. Posso dizer: "faça uma parede de tijolos com tantos metros de comprimento por tantos de altura", ainda que, dada a chamada racionalidade da organização do trabalho, essa não fosse a forma mais adequada. E sabemos a razão, o porquê do desenho: ele fala por nós, no nosso lugar, quando não estamos presentes.

Continuemos com Rossi: "O desenho é um método imediato de expressão de tudo o que é pensado. Provavelmente, o mesmo discurso será válido para a música e a literatura. Ainda que a arquitetura exija, depois, para a sua realização, um tempo mais longo e um conjunto de competências e colaborações mais complexo com relação ao trabalho desenvolvido, por exemplo, por um poeta." Aqui Rossi estabelece uma relação que é claramente falsa; uma falsidade já apontada por Zevi quando diz que as relações entre a coisa criada e o processo de sua concepção são bem diferentes na música, na poesia e na pintura. O discurso de Rossi é de racionalização e é ambíguo. Ele menciona "cooperação", "colaboração" e "um conjunto de outras competências", mas não diz quem são esses outros. Será que está se referindo à colaboração de um engenheiro que fará um projeto de instalações ou o cálculo? O que são as "outras competências"? Deixemos Rossi prosseguir para vermos onde ele chega. "Provocativamente – ele usa essa expressão – digo que não vou ao canteiro de obras enquanto o projeto não estiver terminado." Portanto, ele estava pensando no canteiro de obras, não no engenheiro que faz os vários projetos chamados complementares. "Mas isso para mim significa que acredito na primazia do projeto em relação ao canteiro. O canteiro é uma máquina que vai melhorando progressivamente, segundo um processo de produção cada vez mais preciso, que deve, porém, ser servo do projeto." Não sou eu, é Rossi que diz isso. Mas o canteiro – que me desculpe Rossi – não é uma máquina. O canteiro é constituído de gente, e muita gente.

Mas talvez, voltando a Alberti, Rossi tenha razão quando vê como instrumentos os que estão trabalhando no canteiro. Ou como autômatos, para usar a expressão de Lúcio Costa. Aí, claro, avançando um pouquinho mais, podemos considerar o canteiro como uma máquina e como servo do projeto. Fetiche! Porque não há uma relação entre a coisa-canteiro e a coisa-projeto. A relação que se estabelece, e que se estabelece de fato como relação de servidão, é entre aquele que fez o trabalho de projeto e aquele que manipula a matéria no canteiro. Não se pode dizer que o canteiro é servo do projeto, mas, sim, que aqueles que manipulam a matéria no canteiro, seguindo a ordem de serviço prescrita pelo projeto, são servos daqueles que projetaram. Aí estamos preenchendo uma lacuna do discurso ideológico, preenchendo o vazio, dizendo o que Rossi não diz e que destruiria o discurso que ele produz sobre a relação entre projeto e canteiro.

Já estou me alongando por demais, mas não quero de deixar de lembrar John Ruskin, aquele inglês do século XIX. Sobretudo em um de seus textos, A natureza do gótico[18], ele coloca em relevo – pela primeira vez, penso – a maneira como os homens participam da produção da arquitetura, e que há determinados tipos de arquitetura cuja execução pressupõe necessariamente determinada organização do trabalho, que ele chama de servil. E ele relaciona a linguagem, a estética, o estilo da arquitetura com o trabalho servil que concorre para a sua produção. Segundo Ruskin, um dos grandes méritos do gótico, em oposição a um dos maiores deméritos do Renascimento e de todo o Classicismo, é que a participação coletiva e criativa de todos se dava como condição necessária à própria realização da arquitetura. Nessa produção gótica, diz ele, o direito à palavra era concedido inclusive àqueles que gaguejavam. Ou seja, mesmo aqueles que gaguejam, mesmo aqueles que não são capazes de se expressar da maneira mais pura do ponto de vista da retórica e da gramática, têm direito à palavra na produção da arquitetura gótica, na qual se reconhecia em cada um o que de humano trazia consigo. E portanto, diz Ruskin, essa arquitetura era expressão de tudo aquilo que o trabalho humano, nas suas mais imperfeitas formas de manifestação, tinha a contribuir para a produção daquela obra coletiva, cuja maior grandeza talvez fosse justamente o fato de ela ser fruto desse trabalho coletivo, e não do gênio. O gênio, esse artista maior criador que Lúcio Costa diz ser característico da arquitetura produzida no período da industrialização, tem por reverso a transformação de todos os demais em autômatos, em servos, em instrumentos. E aí as questões de estética e de ética não podem ser separadas. É isso.

(Pergunta da platéia) - É um prazer discutir essas questões aqui na escola, acho que fazem falta. Queria observar que acredito que o mal-estar dos modernistas – você citou Lúcio Costa, Bruno Zevi e outros tantos – em discutir a questão não decorre apenas da relação que tinham com o trabalho manual, mas também do fato de a arquitetura moderna ter sido a base de um processo de divisão do trabalho no interior do escritório de arquitetura: a divisão entre concepção, desenvolvimento, detalhamento, projeto legal e projeto construtivo. Dentro do escritório de arquitetura existe uma concepção que está na cabeça do empresário, dono do escritório, e um desenvolvimento do projeto na mão dos arquitetos que trabalham lá. Há uma expropriação de mais-trabalho nesse caso também. Ao longo do século XX, assistimos a um processo de divisão do trabalho que, nos escritórios de arquitetura, lembra o exemplo de Smith da fábrica de alfinetes, e nos de urbanismo – eu sou urbanista –, o exemplo de Marx da fábrica de coches, juntando as diversas funções dentro de um mesmo escritório. Nos dois casos há expropriação de mais-trabalho. E, portanto, quando esta escola ensina aos estudantes o modelo de um arquiteto que faz concepção, ela também está ensinando um modelo já superado pela divisão do trabalho dentro do escritório de arquitetura. Não vai caber a esses arquitetos – à maioria deles – o trabalho de concepção, mas o trabalho de desenvolvimento de concepções alheias. E quando o trabalho é desses muito típicos de uma indústria imobiliária, as vezes nem a concepção está na mão do arquiteto-empresário, dono do projeto. O trabalho é encomendado com o programa e feito de acordo, e essas pessoas nunca são responsabilizadas ou reconhecidas como arquitetos pela assinatura do projeto.

(Paulo Bicca) – Não ignoro que no processo de produção do projeto encontramos, e cada vez mais, uma divisão social do trabalho. Na sociedade capitalista, a organização do trabalho pelo capital pressupõe, como condição necessária à subordinação do trabalho, sua divisão, seu  parcelamento. Não nego que isso exista nos escritórios, até porque trabalho produzindo projetos de arquitetura. Só que aí a divisão do trabalho está diretamente associada à produção de um produto que é o projeto, e não é arquitetura – façamos a distinção entre essas duas coisas. O que aqui enfatizei, porque era o que me parecia mais relevante, é essa divisão entre a produção do projeto e a produção da arquitetura, a relação entre projeto e canteiro, entre aqueles que concebem a forma do edifício e aqueles que manipulam a matéria, entre aqueles que não trabalham com suas mãos e que têm quem trabalha por instrumento, ou entre o chamado artista maior e aqueles que foram transformados em autômatos no processo produtivo industrializado, conforme Lúcio Costa. Se a contradição interna ao processo produtivo de projetos fosse superada, isso não eliminaria, como decorrência, a contradição maior que está na base, que é a contradição entre o projeto e o canteiro, visto da maneira como aqui procurei descrever. Porque dessa questão os arquitetos reclamam, dizem: ah, não estou tendo liberdade criativa, não estou podendo criar o que gostaria. Ora, é verdade. Agora, por que só nós, arquitetos, teríamos como intrínseca à nossa natureza essa vontade de criar? O homem, por natureza, é um ser criativo. Os índios ou as chamadas civilizações primitivas não se dividem entre homens criativos e não criativos. Até pode haver uns um pouco mais criativos do que outros, mas eles não se diferenciam pela natureza, quando muito, pelo grau. Não se restringe a alguns a capacidade de exercício de um trabalho criativo enriquecedor de suas condições verdadeiramente humanas, nem se relega a outros a atividade que de fato não enriquece o indivíduo humanamente, a ponto de Lúcio Costa poder falar em "autômato" e Alberti em "instrumento" – palavras sem qualidade humana. Nenhum significado humano para aquelas pessoas que manipulam a terra no canteiro de obras! Em nome do quê? É uma pergunta que fica e que nós não nos fazemos porque é extremamente constrangedora. Comecei meu discurso destacando a renegação, a racionalização. De que arquitetura se apropriam aqueles que no canteiro de obras participam como autômatos ou instrumentos? Sabemos como eles moram, onde eles moram, onde eles vivem. Certamente em condições que correspondem às condições de sua participação na produção. Por que moram mal? Porque são pedreiros, peões, "peãozada", como se diz. Do que eles se apropriam? Eles vão ao teatro? Freqüentam os prédios das universidades? Usufruem das belas e maravilhosas arquiteturas que concebemos? E eles são condição necessária à existência dessa arquitetura porque, sem eles, ela não existe. Em nome de quê a chamada arquitetura de boa qualidade lhes é negada? Nenhuma dessas arquiteturas de boa qualidade existiu sem a presença desse autômato, desse instrumento que manipulou a matéria, transformando-a de fato em arquitetura. Não consigo ser indiferente a isso e, ao mesmo tempo, fazer um discurso que associa arquitetura e liberdade ou arquitetura e questões éticas. Não consigo sustentar essas lacunas, esses vazios, esses não-ditos, esconder essa realidade. Não consigo renegar, ou seja, não admitir que ela existe. E não consigo, tanto quanto possível, fazer um discurso racionalizador a respeito dela, no sentido freudiano, para torná-la palatável, justificável, aceitável. E não acho que eu seja nenhum herói. Apenas, a partir de um determinado momento, quando tomei consciência disso, não consigo mais fazê-lo. O que não quer dizer que eu viva vinte e quatro horas falando sobre isso, porque nem eu agüentaria. Mas sempre que sou chamado a falar sobre o assunto, sempre que tenho oportunidade, falo dessa maneira ou então não falo. Porque essa é a realidade, a maneira como, infelizmente, a arquitetura da qual nós participamos não consegue existir a não ser trazendo como parte, como lógica inerente à sua própria natureza, essas contradições antagônicas às quais o velho Marx já tinha se referido. Ou não é uma contradição antagônica um trabalho que transforma o outro em autômato, em instrumento, em servo – para usar as várias expressões que estiveram aqui presentes? Que antagonismo maior podemos querer do que esse, do ponto de vista das relações sociais, no que toca à organização do trabalho? Bom, desculpa, me empolgo… Mas concordo que no interior dos escritórios há exploração do trabalho, produção da mais-valia, enfim, trabalho alienado. Malgrado não chegaram no grau que se verifica no canteiro de obras. E tanto isso é verdade, que todos aqueles que podem participar do projeto, mesmo nessas condições indesejáveis, preferem fazer isso a serem pedreiros no canteiro de obras. Não teriam dúvidas em optar por uma coisa ou outra, mesmo que o trabalho nos escritórios de projeto e firmas especuladoras imobiliárias não se faça nas melhores condições. Jamais achariam que esse trabalho é igual àquele, que essa alienação é tão grande, tão violenta quanto aquela que se dá no canteiro de obras. Todos que têm possibilidade de participar da produção da arquitetura enquanto arquitetos o fazem. E todos que não têm essa possibilidade, e aos quais não resta outra alternativa – se é que se pode chamar de alternativa – que não a de participar da produção da arquitetura enquanto pedreiro, são pedreiros.

(Platéia) - Paulo, qual alternativa você vê?

(Paulo Bicca) – Olha, sinceramente, no capitalismo – e pode parecer que estou sendo um dinossauro – no capitalismo, não vejo alternativa. Não vejo porque é da natureza da organização do trabalho capitalista. O capitalismo primitivo organizou o trabalho nesses moldes a partir do Renascimento, quando começa a ruptura da organização coorporativa e hegemonia da organização manufatureira. Nós, enquanto arquitetos, contribuímos sobremaneira para que isso acontecesse na produção da arquitetura, prática e ideologicamente. Ou não é perfeitamente adequada a subordinação do trabalho ao capital, o discurso de Alberti, quando diz que aquele que trabalha com suas mãos é instrumento do arquiteto, que concebe, planeja, enfim, realiza o trabalho intelectual? Quem realiza o trabalho braçal lhe é integralmente subordinado. Taylorismo é a forma exacerbada disso. Aí eu uso a expressão de Bob Black[19]: enquanto persistir o capitalismo, enquanto não conseguirmos substituí-lo por outra forma de sociedade, outra alternativa não resta que não administrá-lo. E é claro que se pode administrar um pouquinho mais para cá ou um pouquinho mais para lá, mas, efetivamente, infelizmente, o essencial não vai mudar. Quando Engels faz críticas a Dühring, no Anti-Dühring[20], diz, ironizando: "que belo socialismo é aquele que eterniza os operários de profissão". E logo continua mais ou menos assim: "no socialismo, aquele que num momento concebe a forma do edifício é o mesmo que, no momento seguinte, vai empurrar o carrinho de mão". Ou seja, quem concebe a forma é o mesmo que manipula a matéria. A frase diz muito, mas é claro que da intenção ao gesto há uma distância imensa.

(Platéia) – Mas existe isso em algum lugar do mundo?

(Paulo Bicca) – Não, infelizmente não. Mas não acho que temos muito a nos orgulhar deste mundo no qual vivemos. Talvez em sociedades onde a arquitetura se dá sem a participação do arquiteto… mas é insignificante, no mundo como um todo. O que predomina, pelo menos no chamado mundo ocidental, dito mais desenvolvido, são essas regras do jogo, e cada vez mais. Isso é inegável.

(Platéia) – Logo no início da palestra, você disse que o arquiteto não sobreviveria sem a divisão do trabalho. Então, o ideal que você propõe exclui o arquiteto?

(Paulo Bicca) – Excluiria os arquitetos, mas não os construtores de arquitetura, nem os produtores de arquitetura e nem a arquitetura. Porque, veja, o arquiteto, como todas as profissões, é uma categoria histórica. Houve durante muito tempo e ainda há sociedades sem arquitetos e arquitetura sem arquitetos. O que não há é arquiteto sem arquitetura – evidente. Isso quer dizer que podemos ter outras relações de produção, outras maneiras de produzir arquitetura que não as apoiadas necessariamente – porque faz parte da sua natureza – na divisão entre trabalho intelectual e manual. Uma pergunta que faço a você: conseguiríamos definir o arquiteto diferentemente daquela definição que São Tomás de Aquino deu no século XII? Porque arquiteto não é o cara alto, baixo, gordo, que se chama Pedro ou Paulo, que é japonês ou brasileiro, de direita ou de esquerda – nada disso define alguém como arquiteto. Não é a posição política, não são seus conceitos sobre arquitetura, seu estilo, não é nem mesmo sua capacidade ou seu brilhantismo nos projetos – concordas comigo, suponho. Então, o quê é que nos define, já que também não consideramos que todos aqueles que participam da produção arquitetônica são arquitetos? Poderíamos dizer que é o fato de participarmos da produção de projetos arquitetônicos. Mas projeto de arquitetura não é arquitetura, é apenas projeto. A idéia, representada ou não em forma de desenho, não é arquitetura enquanto realidade da natureza transformada. Claro que aí há uma situação constrangedora, embaraçosa, para a qual não temos resposta. E é definitivamente mais cômodo para nós renegar ou racionalizar, sem nenhuma questão de boa ou má fé. Freud, quando fala na renegação e na racionalização, não faz juízo de valor sobre as pessoas que recorrem a esses mecanismos de defesa muitas vezes inconsciente. Ele não diz que as pessoas usam de má fé por isso. Ele reconhece que são formas de comportamento humano, diante de situações também humanas, que são produzidas pelo homem e ao mesmo tempo são extremamente desconfortáveis.

(Platéia) – E você trabalha também como arquiteto?

(Paulo Bicca) – Trabalho como arquiteto e faço esse mesmo trabalhinho. Acho que temos que buscar outra alternativa, mas é realmente muito difícil. Não tenho a receita, a fórmula mágica, nem tenho essa pretensão. Mas acho que essas e tantas outras coisas precisam ser feitas para que se viva numa sociedade melhor, mais justa e até – e faço questão de afirmar isso – para que a boa arquitetura não tenha que pagar esse preço para existir: de ter o trabalho servo como sua condição de existência. Aposto nisso.

(Platéia) – Quando você está concebendo seus projetos, você pensa nas pessoas que estão sendo exploradas?

(Paulo Bicca) – Penso, porque no fundo estou, como já disse antes, fazendo um discurso que tem que chegar até essas pessoas e lhes dizer o que devem fazer. Sei da existência delas. Mas talvez eu também racionalize, no sentido freudiano, e esqueça um pouco, porque fica difícil: "agora estou explorando o cara, agora estou dominando o cara…".

(Platéia) – Não acredito que se trate sempre de uma questão de exploração ou de alienação de qualquer indivíduo que seja. Nas maneiras arcaicas de construir não existia especialização de mão-de-obra como existe hoje, em razão da concorrência. Quantos profissionais de arquitetura a UFMG põe no mercado a cada ano? E quantos bombeiros e eletricistas se formam a cada ano? Acho que o Brasil está passando por um momento que a Europa já viveu. Se você é um eletricista, se vai instalar um sistema qualquer, você tem que provar sua capacidade para estar nesse lugar. Então não acredito que exista exploração, acredito que existe uma grande vontade de ser bom naquilo que você faz. Não sou arquiteta, me formei em design de ambientes e em belas artes também. Os artistas falam muito do "fim das artes plásticas", porque antes o artista era aquele que colocava a mão na massa e fazia sua obra, enquanto que hoje ele é um pensador. As fine arts, que a gente vê nos grandes museus hoje, não é o artista que faz. Ele vende uma idéia. Acho que isso deve acontecer muito na arquitetura, como acontece no design de ambientes: você ser capaz de vender uma grande idéia. Então não vejo assim, pobre coitado do cara que está trabalhando lá no canteiro de obra. Ele que corra atrás, ele que se especialize e dê a contribuição que é exigida no momento. Digo isso porque tenho um amigo que era motorista em São Paulo e saiu do Brasil para os Estados Unidos sem nem falar inglês. Foi para lá e aprendeu na convivência com todos na construção civil. E no fim teve tanto interesse em aprender que os próprios engenheiros da obra vinham lhe pedir soluções. Então acho que existe realmente quem quer conceber o projeto todo e quem não é hábil para isso. E existem especializações que a pessoa vai buscando ao longo do tempo e nas quais se torna capaz.

(Paulo Bicca) – Você não vai se ofender se eu lhe disser que o seu discurso é o típico discurso racionalizador. Claro que isso pode ser um artifício de diálogo meu e uma atitude no mínimo indelicada: eu a qualifico assim e, portanto, a desqualifico enquanto interlocutora, dizendo que seu discurso é racionalizador, depois de tudo o que eu disse sobre isso. Mas esse é o discurso típico, que mostra a realidade de uma outra maneira: "olha, até que ela não é tão ruim como parece, até que ela é aceitável, até que ela se justifica, e tal..." De fato é muito difícil para nós. Mas é um instrumento? É. É um servo? É. Se começarmos a usar as palavras corretas, os conceitos corretos, os termos corretos para a realidade, ela se torna mais embaraçosa. Nós não trocamos de lugar com alguém que passe a vida toda cavando buracos de tubulão, fundações, sapatas – que nem tatu, como os chamam. E o tatu só não troca de lugar conosco porque infelizmente a sociedade priva alguns das possibilidades mínimas. Porque ela, a sociedade, precisa dos dois, não de João, Paulo ou Pedro, nem de alguém do norte ou do sul. Ela se organiza de maneira a precisar de dois indivíduos que personificam dois tipos de trabalho necessariamente separados numa contradição conflitante. Se não for assim, o trabalho não está organizado da maneira que melhor convém ao capital.

NOTAS

[1] Palestra proferida em 04/09/2006, por ocasião do III Colóquio de Pesquisas em Habitação realizado na Escola de Arquitetura da UFMG pelo Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras). Texto transcrito por Felipe Gontijo, com revisão e notas de Silke Kapp. 
[2] Paulo Renato Silveira Bicca foi professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UNB de 1971 a 1996 e atualmente leciona na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-RS. Escreveu, entre outros, Palladio e o desenho renascentista (Porto Alegre: Edipucrs, 2006) e Arquiteto, a Máscara e a Face (São Paulo: Editora Projetos, 1984), sendo esse último diretamente relacionado ao tema desta palestra.
[3] CHÂTELET, François; MAIRET, Gérard. Histoire des idéologies. Paris: Hachette, 1978.
[4] Ver, por exemplo: CHAUI, Marilena de Souza; DAMIANI, Emilio. O que é ideologia?. São Paulo: Brasiliense, 2001.
[5] A pesquisa sobre os mecanismos de defesa foi sistematizada pela filha de Sigmund Freud, Anna Freud. Ver, principalmente: FREUD, Anna. O ego e os mecanismos de defesa. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
[6] Ver: MARX, Karl. O Capital. Livro I. Diversas edições.
[7] Sohn-Rethel, Alfred. Geistige und körperliche Arbeit: zur Epistemologie der abendländischen Geschichte. Weinheim: VCH, 1989. (Em inglês: Intellectual and manual labour: a critique of epistemology. Atlantic Highlands, N.J: Humanities Press, 1977.)
[8] ALBERTI, Leon Battista. De re aedificatoria. On the art of building in ten books. London: MIT Press, 1999.
[9] CHOAY, Françoise. A regra e o modelo: sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1985.
[10] Ver, por exemplo: CHASTEL, André. Le grand atelier d'Italie, 1460-1500. Paris: Gallimard, 1965. (Em inglês: Studios and styles of the Italian Renaissance. New York: Odyssey,1966.)
[11] VITRUVIUS, Pollio. Da arquitetura. São Paulo: Hucitec/ Annablume, 2002.
[12] FERRO, Sérgio. O Canteiro e o Desenho. São Paulo: Projeto, 1979.
[13] ZEVI, Bruno. Saper vedere l'architettura. Torino: Enaudi, 1948. (Em português: Saber ver a arquitetura. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.) ZEVI, Bruno. Architectura in nuce. Venezia, Roma: Instituto per la Collaborazione Culturale, 1960. (Em português: Architectura in nuce: uma definição de arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1986.) ZEVI, Bruno. Storia dell'architettura moderna. Torino: Enaudi, 1950. (Em português: História da Arquitetura moderna. Lisboa: Arcádia, 1970.) ZEVI, Bruno. Il linguaggio moderno dell'architettura. Einaudi: Torino, 1973. (Em português: A Linguagem moderna da arquitectura. Lisboa: Dom Quixote, 1984.) ZEVI, Bruno. Ebraismo e architettura. Firenze: Giuntina, 1993 (Em português: Arquitetura e Judaísmo: Mendelsohn. São Paulo: Perspectiva, 2002.)
[14] SCAMOZZI, Vicenzo. Dell'idea della architettura universale. Venetia: 1615.
[15] Há um pequeno engano aqui, Eladio Dieste, nascido em 1917, morreu em 2000.
[16] ROSSI, Aldo. L'architettura della città. Padova: Marsilio, 1966. (Em português: A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[17] ROSSI, Aldo. A arquitetura da idéia. In: FAROLDI, Emilio, VETTORI, Maria Pilar. Diálogos de arquitetura. São Paulo: Siciliano, 1997.
[18] RUSKIN, John. The nature of gothic. In: RUSKIN, John. The Stones of Venice. Diversas edições.
[19] Parte dos textos de Bob Black estão disponíveis em http://www.inspiracy.com/black/
[20] ENGELS, Friedrich. Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft, 1878. (Em português: Anti-Duhring ou a subversão da ciência pelo Sr. Eugenio Duhring. Lisboa: Afrodite, 1971.)