O COTIDIANO E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO
Prof. Dr. Roberto Luis de Melo Monte-Mór

Transcrição: Felipe Gontijo
Revisão: Silke Kapp

[Henri] Lefebvre fez um percurso muito peculiar: sai de uma vilazinha nos Pirineus e se torna uma espécie de cidadão do mundo, mas com base em Paris, ou seja, passa de uma abordagem completamente rural para a questão urbana. Lefebvre é muito próximo dos arquitetos. Imagino que a maioria de vocês já tenha tomado algum contato com seus livros. O mais conhecido, O Direito à Cidade, foi escrito em 1968. Em 1969, eu era aluno desta escola e o D.A. já tinha um exemplar, traduzido para o português, de modo que fomos 'aplicados' no Lefebvre muito rapidamente. Isso é curioso porque é um autor muito difícil, confuso de ler e de entender. Os alunos em geral reclamam que ele fica dando voltas, pois não tem pragmatismo nem nenhuma proximidade de um pensamento positivista. Eu diria até que ele é um precursor do pensamento pós-moderno, porque leva a dialética para uma dimensão que não cabe no marco da ciência social moderna.

Acho que a razão de ele ser tão querido e, de uma certa maneira, tão bem recebido entre os arquitetos, seja o fato de ter sido o autor que mais avançou em assentar as bases da questão do espaço e da relação espaço-sociedade. Lefebvre talvez seja o único 'não-espacialista' (chamo de 'espacialistas' a nós, arquitetos, geógrafos ou quem foi formado numa perspectiva espacial, de tentativa de compreensão do espaço – Lefebvre é sociólogo e filósofo) que entendeu, escreveu a respeito e avançou com profundidade na idéia de que o espaço é o elemento central de estruturação da sociedade, e particularmente da sociedade contemporânea. Ao fazer isso, ele mistura questões, como um debate tradicional entre agência ou ação e estrutura.  Ele rompe com a dicotomia (que é também um confronto de áreas) entre o indivíduo, agente isolado capaz de mudar o mundo e, de outro lado, a estrutura como condicionante e a necessidade de mudanças estruturais. Ele tem uma perspectiva que um autor já chamou de 'trialética', nome considerado infame e indesejável por muita gente. Ele mesmo a chama de dialética da tríade, que é pensar uma dialética para além dos dois termos; seja articulando três elementos, como, por exemplo, espaço, tempo e sociedade; seja articulando os dois elementos opostos da dialética e um terceiro elemento resultante, mas que não se esgota e se mantém como uma terceira questão, como, por exemplo, prática e praxis.

Acho que uma das questões fundamentais do Lefebvre, que é um pensador originalmente marxista (poderíamos chamá-lo de neo-marxista, pois o marco sem dúvida nenhuma é Marx mesmo que avance, rompa ou modifique sua abordagem) é a economia política. O elemento principal, além da questão do espaço, é a questão da alienação, diretamente ligada à do próprio espaço. Lefebvre resgata de Marx a questão da alienação, mas coloca-a no espaço, no território, e dá ao espaço uma dimensão fundamental. Ele diz: "não há realidade social inespacial"; qualquer realidade social é, por definição, espacial. Vários geógrafos, depois dele, já disseram isso, mas essa perspectiva é de uma concretude. É impossível pensar a dimensão social fora do espaço. E não se trata de uma projeção do espaço, trata-se de uma relação ontológica, fundante. A sociedade, por definição, é espacial, e todos os processos sociais são espaciais, geram formas espaciais.

Há um autor americano, Bertell Ollman, que, na década de 1970, sem trabalhar Lefebvre, escreveu um livro muito interessante sobre alienação: Alienation. Marx's Conception of Man in Capitalist Society.  O livro é pouco conhecido no Brasil, mas fez um sucesso muito grande no mundo anglo-saxônico, porque de uma certa maneira traduziu a questão da alienação e alguns conceitos marxistas para um público que não tem hábito de ler Marx e não passou pela leitura d'OCapital. Ollman resgata uma dimensão da alienação que está também em Lefebvre. O elemento fundamental do capital são as relações sociais; o capitalismo é antes de tudo um sistema de relações sociais, de relações de produção. E a questão do capital é também de relações internas, e não de relações externas. A coisa se dá de dentro para fora.

Acho que quando tentamos entender a vida cotidiana, estamos chegando um pouco nessas duas dimensões. A questão da alienação é fundamental: o que é a vida cotidiana e como a gente se aliena de si e do mundo ao não perceber, não pensar, não estudar e não tentar compreender a vida cotidiana. E a vida cotidiana tem uma espacialidade muito marcada. Nós, arquitetos, sabemos disso, pois lidamos com ela por aí. Mas lidamos num nível imediato, que Lefebvre chamaria de espaço percebido ou espaço pensado, e não de fato com o espaço vivenciado. A nossa tentativa de desalienação, enquanto projetistas ou analistas do espaço construído, vai na direção de um processo de compreensão dessa terceira dimensão do espaço que Lefebvre propõe – voltarei nisso adiante –, mas a minha interpretação é de que não temos elementos teóricos para trabalhar com ela. Percebemos e sentimos isso, mas não conseguimos elaborar. E é uma elaboração difícil. Acho que é nesse sentido que esse ciclo de conversas e as pesquisas que buscam a 'desalienação' na habitação podem avançar, para chegarmos a um marco mais contemporâneo da questão da vida cotidiana.

Trata-se de um temática extremamente difícil. O que é o cotidiano? Lefebvre tem uma definição que diz o seguinte: "É o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas". Quando se tira do vivido, da prática, da vivência, todas as atividades especializadas, o que sobra é o cotidiano. Acho que é uma definição muito fluida, difícil, e esse cotidiano é completamente mutável. Vários pensadores tentaram e ainda tentam discutir o cotidiano, e sempre enfrentam a dificuldade de agarrar esse objeto de estudo. O que na verdade seria o cotidiano?

Lefebvre começa a escrever sobre o cotidiano no pós-guerra. Em 1947 escreve um trabalho que ele chama de Crítica da vida cotidiana. A idéia é de uma ruptura crítica com o próprio marxismo ocidental tradicional. É interessante entender que em 1947, isto é, depois da guerra, com a importância da Rússia no mundo ocidental como parceira dos Aliados e, ao mesmo tempo, com todos os males do stalinismo, Lefebvre acaba rompendo com o Partido Comunista Francês e se desloca, assim como acontece em outras áreas do conhecimento, da grande questão da emancipação, colocada em termos marxistas, centrada no trabalho, na relação capital-trabalho, para a relação do cotidiano. É a partir disso que ele chega ao espaço e ao urbano; quando entende que, na verdade, a revolução – e ele vai caminhar no sentido de uma revolução cultural permanente – não está na porta da fábrica, não está na dimensão pura da relação capital-trabalho, mas na transformação do cotidiano. Eu mencionei a junção que Lefebvre faz entre ação, agência e estrutura. Passa por aí também toda uma abordagem idealista: ele diz que você tem que mudar o pensamento, mudar a cabeça, mudar os valores etc. versus a revolução estrutural. Quando você pensa na revolução do cotidiano, as duas coisas estão juntas. Porque o seu cotidiano necessariamente implica a mudança da sua cabeça, implica a mudança da sua prática cotidiana, mas isso é colocado num marco estrutural.

Assim, Lefebvre diz várias vezes ao longo da vida que a questão do cotidiano é sua questão fundamental. Isso está documentado no fato de que ele ter uma trilogia a respeito. Em 1947 começa a Crítica da vida cotidiana; em 1962, escreve uma Crítica da vida cotidiana 2, onde vai se propor a criar os fundamentos de uma sociologia da cotidianeidade; em 1981, já próximo do final de vida, ele faz uma Crítica da vida cotidiana 3, cujo subtítulo é Da modernidade ao modernismo, com a proposta de uma meta-filosofia do cotidiano.

Na verdade, se o cotidiano é o que subsiste depois que se tira todas as especializações, então o cotidiano é a própria essência da vida. Sou arquiteto, tenho uma série de especializações, profissionais, pessoais e de prática etc., mas isso tudo é adjetivo, o substantivo é na verdade como eu construo a minha vida. E como eu construo a minha vida é, em última instância, como eu construo o meu espaço. Existe uma correspondência direta. A construção da vida social é, por definição, a construção do espaço social.

E o quê seria então estudar a vida cotidiana? Na década de 1960, Lefebvre monta um grupo de estudos sobre a questão do cotidiano com o pessoal ligado ao movimento situacionista, do qual ele participa. Há um trabalho de Guy Debord dessa época (1961) chamado Perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana, no qual ele diz: "estudar a vida cotidiana seria uma empresa perfeitamente ridícula, e além disso condenada desde o princípio a perder de vista o seu próprio objeto, se não propuser explicitamente o estudo da vida cotidiana para transformá-la".

Esse sentido transformador do imediato, do dia-a-dia, da coisa pequena, é visto – e o Lefebvre foi muitas vezes criticado por isso – como uma ideologia, como uma fragilização da grande luta transformadora socialista, da emancipação socialista. Quando se propõe transformar tudo o que não é especialização, o dia-a-dia, então aparentemente se cai numa dimensão muito idealista, muito pouco transformadora, que lembra o tipo de proposição que se vê em filmes americanos: 'eu sozinho faço a diferença, tenho que mudar minha cabeça'.

Mas o termo crítica da vida cotidiana poderia ser entendido também de uma maneira inversa: a crítica da vida cotidiana se exerce, basicamente, sobre tudo o que é exterior a ela. Então na verdade passa a ser a crítica do mundo no qual ela está inserida. E essa é a grande questão que remete novamente à da alienação. Por que a crítica da vida cotidiana? Porque a gente vai se alienando de si, vai se alienando da vida em função das demandas do mundo especializado. E isso se articula com a questão do capitalismo, na medida em que o capital é um modo de relações sociais impessoalizado, com uma lógica que não está presa na dimensão humana, nas necessidades, nos acontecimento ou no acaso. Sua lógica é externa, desumana – ou inumana, se quiserem –, centrada na acumulação do capital, e que mina as próprias relações originais do mercado, as próprias relações originais das trocas humanas.

Se estou falando de mercado, estou falando de economia, mas também podemos pensar em trocas humanas como um todo. Quem já passou um tempo em países capitalistas avançados percebeu que as relações sociais capitalistas permeiam o dia-a-dia, o cotidiano. Quem tiver parentes ricos, de alta burguesia, também pode perceber isso com facilidade aqui. O que domina é a lógica da mediação, que passa além de qualquer sentimento humano, a lógica da troca, da acumulação, da riqueza. A crítica do cotidiano, esse processo de desalienação, é na verdade uma crítica da prática pessoal, dos valores internos do agente, mas também necessariamente uma crítica da estrutura, porque, como eu disse antes, criticar o cotidiano é criticar o que lhe é externo. O cotidiano não existe sem o mundo especializado, não existe em si mesmo. Mesmo que você esteja morando no meio do mato, num grupo indígena com uma divisão do trabalho baixíssima, há processos de especialização: fulano é bom nisso, ciclano é bom naquilo. Mas na verdade não é nisso que consiste o cerne da vida social.

A vida privada é quando você sai do universo (no mundo contemporâneo cada vez mais difícil) de uma vida pública. No caso da cidade isso é muito marcado: a cidade como espaço do encontro e do convívio, hoje, nos obriga cada vez mais a nos fecharmos na vida privada, fugindo do encontro e do espaço público. A vida privada é privada de quê? No argumento de Lefebvre é muito simples: é privada da vida. A vida, no sentido social e humano mais intenso, está cada vez mais ausente. Cruelmente ausente, é o termo que ele usa. Ela é privada da realização de si mesma, como possibilidade de viver criticamente a totalidade do cotidiano, e privada, na maioria das vezes, de fazer pessoalmente sua própria história. Esse então é o substrato, que eu consigo colocar em palavras para vocês, da questão do cotidiano que move Lefebvre originalmente.

A primeira manifestação mais completa de ligação entre essa perspectiva e a questão da habitação está em O Direito à Cidade, de 1968. A crítica que Lefebvre faz nesse texto é uma crítica da habitação, tal como ela vinha sendo tratada nas vertentes funcionalistas de políticas públicas. O que é "o direito à cidade"? De uma certa maneira, é a negação da habitação em si mesma. Existe uma estratégia da burguesia para colocar o proletariado e as outras classes não dominantes para fora do espaço do poder, para fora do espaço do excedente coletivo e para fora do espaço da festa cultural. Isso se estabelece no momento em que se rompe a possibilidade de um pacto social proposto pela burguesia, com igualdade, fraternidade, etc. É impossível a liberdade, a igualdade, a fraternidade no contexto da cidade industrial. Essa possibilidade de democracia urbana se esgota no final do século XIX, na Europa. Quando nós importamos o modelo de Belo Horizonte, já colocamos o proletariado do lado de fora da [avenida do] Contorno. Aqui dentro estão os oligarcas da pequena burguesia, os funcionários públicos, as classes dominantes; e os trabalhadores, sejam rurais ou industriais, vão para a área suburbana. Essa lógica funcional (que de certa maneira os arquitetos compraram, desenvolveram e para a qual fizeram n propostas sem questionar sua essência,  como a cidade radiosa, a cidade jardim, etc.) é que Lefebvre questiona a partir da discussão da alienação da vida cotidiana, quando ele percebe que existe um processo de exclusão do poder, da cultura, da festa, da riqueza coletiva, do espaço público, da monumentalidade. Tanto é, que ele passa a discutir a rua e o monumento, fazendo essa contraposição. Acho que um sinal de que ele não está tirando nada da cartola, mas expressando um sentimento daquele momento (1968), é que a autora norte-americana Jane Jacobs, de uma vertente liberal, completamente diferente do pensamento de Lefebvre, diz mas mais ou menos a mesma coisa na mesma época: a importância da vida cotiana e como as cidades estão morrendo na medida em que se tenta impôr especializações, externalidades a ela, negando a prática cotidiana. O Direito à Cidade é um livro que não teve questionamento. Ele não é facilmente traduzido para o mundo anglo-saxão, pouca gente leu, embora, como eu disse antes, tenha chegado ao Brasil e a todo o mundo de língua ibérica apenas um ano depois de sua publicação em francês.

Mas Lefebvre não pára aí. Ele escreve um livro, no mesmo ano, que se chama A vida cotidiana no mundo moderno, em que propõe elementos novos dessa crítica, aprofundando o conceito. Enquanto todo o mundo discute a cidade industrial, ele abandona essa discussão e se volta à sociedade burocrática de estado. O estado do bem-estar costuma ser apresentado como uma solução, pois passaria o excedente, a produtividade ou a riqueza para as mãos dos trabalhadores mediante o aumento do salário real, etc. Lefebvre denuncia que, na verdade, esse é o estado burocrático de consumo, pelo qual se cria e se viabiliza o capital, trazendo mais profundamente para a vida cotidiana uma lógica que lhe é externa, que é a lógica do consumo capitalista dirigido. Então a sociedade burocrata é dirigida para o consumo; mas dirigida por quem? Dirigida pelo capital junto com o estado. E, segundo Lefebvre, para se implantar isso, é preciso minar o que não cabe ali, tirar fora todas as crenças e os valores antigos que não são compatíveis com as relações capitalistas. O jargão que se usa é des-envolver. O que envolve o subdesenvolvido? É exatamente uma "irracionalidade", uma "falta de lógica" funcionalista, uma falta de adequação aos comandos externos. E o processo de modernização cumpre esse papel de desmontagem.

Nesse contexto, Lefebvre fala de 'sociedade repressiva', que se torna hiper-repressiva e finalmente se transforma numa sociedade terrorista. Não se aceitam desvios, se controla isso, se fecha aquilo. Na sociedade terrorista – e Lefebvre diz isso em 1968, antevendo como a sociedade terrorista avança na sua dimensão dialética – aumentam a repressão e o controle, até que, necessariamente, explode o descontrole. No nosso caso, isso ocorre com mais visibilidade (estamos vendo aí, PCC e tudo o mais); nos países desenvolvidos (conheço melhor os Estados Unidos) se dá de uma maneira mais sutil. Como me disse um amigo indiano uma vez: a gente antigamente podia fazer brincadeira na rua. Hoje você não pode mais porque, com o celular, ligam para a polícia e ela chega em um minuto, menos de um minuto. Então brincadeiras que faziam, de fazer caretas para as pessoas e coisas desse tipo, hoje não dá para fazer mais. Em determinadas áreas, você está completamente monitorado por câmeras. Há o sentimento de que você está constantemente vigiado nessas sociedades "avançadas".

Lefebvre se pergunta qual é o ardil por trás disso tudo e tenta desmontá-lo: "o capitalismo moderno necessita incrementar o consumo, elevar o nível de vida". E ele questiona o que seria "elevar o nível de vida". Aumentar o nível de consumo? O que é elevar o nível de vida? Qual é o sentido dessa expressão? "As condições de produção são parcelalizadas e cronometradas até um grau extremo, chegando a ser completamente insustentáveis. E a alienação é tamanha que o tempo perdido é o tempo do trabalho, que só se justifica pelos diversos graus de lucro e remuneração que procura, e que permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de ócio". Ou seja, vivemos numa passividade cotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo, onde é esvaziado todo o discurso sobre a lógica do trabalho, lá do nascedouro do capitalismo, de Max Weber e outros. O trabalho passa a ser um tempo morto, do ponto de vista da vida, em que você reúne condições para comprar o seu direito ao repouso, ao lazer. Isso se reflete em várias coisas: tomem-se os parques – você entrega tudo para o capital, para a lógica do capital, para a destruição, mas mantém parques, reservas, onde você vai nos fins de semana. Aí sim, aquilo ali é um lugar não alienado.

Lefebvre escreve então, em 1970, sobre A RevoluçãoUrbana, amplificando e radicalizando a questão de O Direito à Cidade, mas trazendo também uma dimensão otimista que já estava embutida no livro anterior. Existe um antídoto possível para toda essa alienação, para toda essa manipulação da vida, que é a praxis política urbana. É como se, em reação a 1968 – esse ano louco da contracultura, do movimento estudantil, de todas as rebeliões pelo mundo afora – estivesse nascendo na cidade em 1970 algo em que ele vê uma revolução urbana; uma coisa nova que vai pôr limites a todo esse processo. Lefebvre ainda está falando do industrial, do urbano versus o industrial. Hoje, poderíamos ampliar isso para formas de organização social não capitalistas que estão colocando em xeque as formas capitalistas dominantes. Mas naquele momento Lefebvre fala do urbano como uma prática coletiva centrada no valor de uso e no cotidiano, isto é, num outro cotidiano não dirigido, que nasce de um espaço vivenciado, de uma praxis. A idéia de praxis é essa: uma prática teorizada, reflexiva, não alienda. Começa a se anunciar uma sociedade urbana que pode modificar a lógica dominante na medida em que lhe coloca limites, subordina-a. Sociedade urbana dois sentidos: o urbano no sentido extensivo, a sociedade toda ela urbanizada, mas também o urbano no sentido da sua lógica principal ser a reprodução coletiva e não a acumulação, típica do capitalismo industrial. Isso manifesta-se numa nova organização.

Na verdade, as coisas parecem ter ido na direção sugerida por Lefebvre. Pouco tempo depois de A Revolução Urbana, vários cientistas sociais são obrigados a estudar os movimentos sociais urbanos, essa grande novidade dos anos 70. De repente, todo o discurso higienista e racionalista, todo o nosso discurso de arquitetos que desenham a cidade ideal, tudo isso cai por terra. E não é um problema brasileiro, de país subdesenvolvido; é uma questão mundial. Surge uma mobilização – Espanha, França, Estados Unidos, Itália – em função das condições do cotidiano ou, simplificando, das condições de vida. A esquerda dizia que era uma bobagem, que a luta não era essa, mas do sindicato, a luta capital versus trabalho; dizia que ficar discutindo rede de esgoto, creche etc. não teria importância nenhuma. Mas Lefebvre provou estar certo, e a maioria da esquerda, errada. Houve de fato um deslocamento e a questão da cotidianidade venceu.

Agora, qual é a questão teórica importante? Um pouco mais tarde Lefebvre escreve um livro que se chama Espaço e Política – que ficou conhecido como O Direito à Cidade 2, não sei em que sentido – no qual reafirma a questão que não estava tão clara: tudo isso se dá no espaço, é territorializado, se dá nos lugares. E é interessante que Lefebvre não usa o termo lugar, caro aos geógrafos como Milton Santos e outros. O lugar é aquela porção do território e do espaço social onde todo o processo social e histórico se condensa. Mas em Lefebvre essa idéia de lugar está embutida na idéia de vida cotidiana e de espaço vivenciado, espaço vivido. Ele então reitera essa questão da cidade: não é apenas o direito à cidade, mas a consciência da dimensão política do espaço que permeia tudo, inclusive o cotidiano. Se eu luto pela política no meu espaço de vida imediato, estou na verdade fazendo uma luta muito maior, que tem articulações, projeções e possibilidades muito maiores.

Como Lefebvre é muito criticado pela idéia da revolução urbana (dizem que parece conto de fadas: vai acontecer uma grande mobilização nas cidades que vai mudar o curso da história, e não-sei-o-quê; leva paulada de tudo quanto é lado), ele escreve um livrinho que se chama A Sobrevivência do Capitalismo. A reprodução das relações de produção. Ele pergunta por que o capitalismo sobrevive, entra em crise, volta, entra em crise. E ele diz mais ou menos o seguinte: o capitalismo sobrevive por duas questões fundamentais. A primeira é a reprodução das relações sociais de produção. Muita gente, inclusive inimigos de Lefebvre como Althusser, já havia dito que os aparelhos ideológicos do estado são fundamentais para reproduzir as relações sociais de produção. A peculiaridade do Lefebvre é que a reprodução das relações de produção tem um complemento fundamental, que é a produção do espaço. Como é que o capitalismo sobrevive? Sobrevive reproduzindo as relações de produção e produzindo espaço. Se não existe relação social que não tenha uma dimensão espacial, então a equação está fechadinha.

Lefebvre, portanto, abandona um pouco a discussão do urbano e da cidade – que é de mais fácil percepção para nós, arquitetos – e começar a discutir a produção do espaço como um todo, isto é, a produção do espaço social. Ele tenta mostrar que essa produção do espaço se dá de uma maneira extremamente complexa. Ela se dá no nível do cotidiano, do espaço abstrato, econômico, distante. Você tem uma ordem próxima e a ordem distante, que interage nesse espaço vivido, que de alguma maneira se aproxima da idéia de lugar. E como é que essas coisas se articulam num capitalismo – e aí é uma interpretação minha – que não está conseguindo reproduzir suas relações de produção? Não há crise na acumulação, a gente faz mil coisas, invade países, destrói, avança com a tecnologia e consegue manter o grau de acumulação, mas a reprodução das relações de produção está em crise. A proposta inclusiva, que no início alimentou a burguesia e depois o próprio capitalismo, deixou de existir, não é mais inclusiva. As relações sociais de produção não estão sendo mais reproduzidas de forma abrangente, de forma a incluir todo mundo, de forma a se viabilizar.

Como se dá a produção do espaço?  Acho que essa é nossa questão central, e que faz voltar à questão da habitação. A minha geração tentava resolver isso por uma desalienação do capital. Quando entrei na escola, no final dos anos 60, a idéia dominante era de que teríamos um processo de industrialização muito avançado dentro do próprio capital e que isso resolveria o problema. Apesar de estarmos vivendo todo esse questionamento do Lefebvre e de outros teóricos, não conseguíamos trazer isso para dentro da arquitetura. Nosso marco era completamente modernista; pensávamos que a industrialização da construção seria a solução. Hoje definitivamente não é mais assim, ainda que também não se trate de voltar ao pré-industrial, ao pré-urbano. Há uma coisa a ser reconhecida, descoberta, investigada, inventada. Não se trata mais de reproduzir relações assalariadas, formar grandes empresas capitalistas ou buscar soluções dentro das relações de produção tradicionais. Mas também não podemos simplesmente buscar formas tecnológicas, sociais e espaciais de tempos passados, numa espécie de nostalgia. Temos que buscar uma terceira coisa, recriar, reinventar. Isso não será possível, a meu ver, se a questão lefebvriana não for central: a consciência da alienação do espaço de vida, de si, da própria história; a consciência do quanto estamos impregnados das especializações, das forças externas, das determinações externas, como já perdemos qualquer perspectiva de controle e a nossa produção do espaço é desligada de nós mesmos, incapaz de um sentido revolucionário. Obrigado, acho que era isso.

Platéia – Roberto, quando você estava falando do livro O Direito à Cidade, do processo de exclusão e tudo isso, fiquei pensando se seria também essa exclusão proposta pelo próprio instrumento que é o planejamento. Andamos discutindo o planejamento nesse viés: a arquitetura é planejamento despregado da prática e do cotidiano. Isso não seria um dos problemas?

Roberto – O planejamento, de uma certa maneira, é criado para isso. O planejamento, no sentido genérico, é um instrumento importado do comunismo quando o capitalismo entra em crise. Antes disso havia o planejamento de cidades, mas que era muito mais desenho de cidades. O planejamento como prática sistemática é trazido na perspectiva de que há uma ordem da qual o mercado capitalista não dá conta. Torna-se necessário um novo pacto, uma intervenção, e o planejamento nasce no contexto desse novo pacto, nos Estados Unidos de Roosevelt, importando a idéia de que existem bens públicos ou determinados elementos centrais da sociedade moderna de que o liberalismo puro e simples não dá conta. Mas tenta-se resolver a melhor forma de organizar os recursos humanos e naturais e o espaço urbano, regional e nacional dentro do marco do progresso capitalista. A crítica de Lefebvre e de outros, na verdade, vai ao cerne disso. O planejamento – dizendo de uma maneira meio radical e quase grosseira – é o instrumento de fato do poder hegemônico constituído para tentar resolver a questão sem mudar nada, sem nenhuma transformação. E por isso mesmo ele é marcadamente excludente. Ele é iluminista, é de cima para baixo e está dentro do marco do 'físico' social: o grande sociólogo ou estudioso social que é capaz de ver de fora qual é o problema da sociedade e resolvê-lo em função de um bem comum ou uma ordem comum. Que ordem é essa? É a ordem do capitalismo, a ordem burguesa. Então o planejamento na verdade é uma sofisticação e racionalização de um processo que já ocorria espontaneamente. Aí você pode dizer: o planejamento mudou muito. Essas vertentes – a lefebvriana e outras – geraram um planejamento oposto, especialmente na América Latina. Temos vários pensadores que não acreditam na construção de modelos racionalistas e invertem a questão: em vez de vir de cima para baixo, segue de baixo para cima. Há vanguardas política que deitaram e rolaram quando surgiram os movimentos sociais urbanos significativos. Temos um exemplo forte no Brasil. Quem está no planejamento hoje, no Ministério das Cidades, vem da luta popular, do movimento pela reforma urbana, é a vanguarda política ligada à esquerda brasileira que estava lá, desde 63 e retomada no período da Constituinte, mobilizando uma população. Hoje fala-se de um planejamento horizontalizado, com uma articulação entre o saber técnico – e existe um saber técnico sistematizado – e o povo. A população que era objeto de planejamento – no máximo se colocavam sondas para ouvir melhor canais muito limitados de participação – começa a ser tomada hoje como sujeito do planejamento. Acho que ainda é uma discussão em construção, não está resolvida. Mas há um processo apontando numa direção que se poderia considerar otimista.
Essa questão já foi falada lá atrás. Eu ia terminar com um textinho interessante do Guy Debord e me esqueci – então vou aproveitar. Ele é de 61. Diz o seguinte:

"A crítica e recriação perpétuas da totalidade da vida cotidiana, antes que seja efetuada de forma natural por todos os homens, deve ser empreendida sob condições de opressão total e com o objetivo de arruinar tal opressão."

É interessante, porque a nossa discussão sobre planejamento nos anos 70 era bem por aí. Quem é o inimigo? Queríamos identificar estratégias, precisávamos saber quem é o inimigo, uma coisa de guerra. Era uma situação de opressão mesmo e tínhamos que lutar contra essa opressão. Isso vicejou inclusive dentro dos órgãos de planejamento aqui em Minas. Tínhamos um 'bunkerzinho' dentro da Fundação João Pinheiro, que era o centro de desenvolvimento urbano, e brigávamos com o resto nessa linha.

"Entretanto, não é um movimento social de vanguarda que pode cumprir semelhante programa, por maior que sejam suas simpatias revolucionárias. E tampouco pode realizá-la um partido revolucionário de modo tradicional, por muito que conceda um lugar primordial à crítica da cultura, entendendo esse termo como um conjunto de instrumentos artísticos ou conceituais, mediante os quais uma sociedade se explica a si mesma, estabelecendo objetivos para a vida. Uma e outra – essa cultura e essa política – já estão esgotadas. Por isso não é de se estranhar que a maior parte das pessoas se sintam indiferentes a elas."

Ele está falando de Paris, não era bem o nosso caso, está aí o PT que não me deixa mentir.

"A transformação revolucionária da vida cotidiana não está reservada a um futuro vago. O desenvolvimento do capitalismo e de seus insustentáveis imperativos a estabelece, imediatamente, na medida em que sua alternativa não é outra senão a perpetuação da escravidão moderna. E essa transformação assinalará o fim de toda expressão artística unilateral e armazenada sob a forma de mercadoria, ao mesmo tempo que o fim de toda a política especializada. Essa será a tarefa de uma nova organização revolucionária, tarefa que começa, agora, a partir da sua própria formação."

Essa idéia é a de que, na verdade, nem as vanguardas políticas, nem o partido organizado dão conta. Tem que ser uma mudança que vai nascer, mesmo, visceral, do seio da sociedade, da vida cotidiana, em última instância.


Platéia – Os movimentos populares, surgem, crescem e tomam o poder, mas reproduzem a mesma coisa quando chegam lá em cima.

Roberto – Eu acho que estamos num momento de muita transição. Cai um rei e o que você põe no lugar? Não há dúvida de que em curto prazo, sim. Depende de nós conseguirmos criar mecanismos de renovação. A proposta de Lefebvre é de revolução cultural permanente. Há várias vertentes de revolução cultural permanente, várias maneiras. Implica em criar instituições, mecanismos, formas. Eu diria o seguinte: quando se cai na ordem dominante – econômica, jurídica etc. – o tempo de transformação é muito mais lento; melhor será conseguir criar coisas paralelas, que não neguem a articulação para fora. Vou dar um exemplo dentro da economia solidária. Existem vários exemplos de moedas, circuitos internos, formas alternativas, sistemas humanitários, sistemas de troca, etc., mas recentemente me relataram uma experiência em Vitória ou Vila Velha (se alguém souber disso melhor, por favor, fale) que é curiosa, porque lá parece que isso avançou muito. Existe uma moeda e todas as transações internas são feitas com ela. O que isso significa? Evita-se vazamento de renda, porque a moeda só vale ali. Em Minas usavam isso – o famoso Boró no século XIX. Havia uma economia fechada dentro das fazendas, muito forte, e pagavam os empregados numa moeda interna, que obrigava a comprar no barracão. Se uma comunidade faz isso diante de um sistema maior, cria-se um processo que eu não saberia dizer em que vai dar, mas que questiona na base a lógica do que está aí. Ele cria uma outra lógica, concorrente.

Platéia – Vocês estavam falando do planejamento, então quero emendar uma outra pergunta. Paulo Bicca comentou que exatamente nessa época os departamentos de projeto e as disciplinas de projeto arquitetônico se transformaram em departamentos de planejamento e disciplinas de planejamento arquitetônico. Não sei se você se lembra disso ou se isso teve alguma importância, mas você acha que houve uma mudança de abordagem ou era apenas uma moda, em que muda o nome mas continua tudo igual? Porque antes disso parece que ainda estavam lá no registro das grandes, médias e pequenas composições…

Roberto – É, minha geração é das composições. É interessante você brincar com isso porque claramente há uma inspiração artística – composições –, e depois se passa para o projeto, que pressupõe uma lógica dada e uma abordagem muito mais analítica, acho. Existe uma totalidade – a cidade ou o que for – e se faz um projeto ali dentro, em escala muito pequena. O planejamento envolve uma organização maior, muda-se de escala. Não sei, mas imagino que isso deva ter ocorrido quando o curso de urbanismo se fundiu ao de arquitetura. Porque antigamente era arquitetura só, e o urbanismo era um outro curso, completamente separado. Eu tenho dois diplomas de graduação, um em arquitetura e um em urbanismo. Então quando se inclui o urbanismo, a idéia de projeto pode parecer pequena. Pensar que Brasília é um projeto? Brasília é um plano. Imagino que haja uma dimensão de escala, mas há também o fim de uma certeza. O projeto pressupõe uma certeza, é uma visão de futuro acabada lá na frente. No planejamento você tem menos controle. Ele permite interação com o outro, intervenções do outro, você tem que ter um certo distanciamento, pode não ser exatamente do jeito que você quis. O projeto, não, o projeto é um negócio fechado, tende a ser assim.

Platéia – Seu diploma é de engenheiro-arquiteto.

Roberto – Engenheiro arquiteto, sim. A única coisa que eu sabia quando era garoto é que não queria ser engenheiro.

Platéia – Quando você estava falando de como Lefebvre trabalha a questão do cotidiano, disse que pelo cotidiano pode-se mudar uma lógica geral, pois a própria lógica da sociedade é construída a partir do cotidiano, ou seja, a partir das partes menores da vida. A construção da casa, por exemplo, também pode ser uma forma de modificar a lógica geral, construir uma nova sociedade através de uma parte menor? Você acha que a arquitetura pode ter esse papel, ser associada com outras preocupações?

Roberto – Eu sou uma pessoa extremamente otimista, então eu vejo as coisas em geral dessa maneira também. A articulação que Lefebvre faz entre ação e estrutura – e não só ele, hoje tem muita gente mexendo com isso – é um tema que voltou. Agência é a ação individual, a diferença que você pode fazer enquanto agente. A estrutura é onde se colocava esse agente, ou de uma maneira meio alienada e onipotente (a estrutura é uma merda, mas ele é brilhante, etc.), ou, ao contrário, impotente (não há nada que você possa fazer a não ser derrubar a estrutura). Isso é como a gente tendia a fazer, particularmente a esquerda no Brasil: então vamos para a luta armada, porque você sozinho não consegue fazer nada. Eu acho que Lefebvre junta essas coisas quando trata do cotidiano e coloca o foco ali, no menor, que na verdade é o maior. Como se diz, as estruturas se manifestam, se juntam a partir disso. E hoje, no pensamento contemporâneo, na forma contemporânea de ver o tecido social, com suas estruturas de poder e de construção, estamos percependo cada vez mais essa obviedade de que as coisas se constróem em relações pessoais, completamente fora da lógica econômica pura. Tudo converge para lá, mas você tem n elementos diferenciados do cotidiano que também contam. Veja um estudo sobre cidade global, por exemplo: "é uma expressão da organização mundial do capitalismo globalizado contemporâneo…", e você vai ver que está falando do cotidiano de uma cidade, de como é que se dão as articulações em Nova York, de como as pessoas se relacionam. Essa junção, ou a quebra dessa dicotomia, hoje, no pensamento pós-moderno, está cada vez mais evidente. Não se trata mais de escolher entre isso ou aquilo, mas dos dois, como é que você combina esses dois. Então, para chegar à sua pergunta: num processo de mutirão, por exemplo, qual é a capacidade transformadora? Ele não é a revolução das armas, da minha geração, mas, dentro da perspectiva lefebvriana, é a verdadeira revolução. É a idéia de Debord: não são as vanguardas políticas nem os grandes partidos que vão fazer isso, mas vai ser uma coisa que se constrói a partir do cotidiano. Aí volta a questão anterior – mas a tendência não é cair nos velhos esquemas? É. Em qualquer nível em que se confere poder, capacidade de consumo e todos esses elementos, a tendência é cair nos velhos esquemas. O que a gente pode confiar é que nesse processo tem transformações. Se você cai num mesmo esquema de relações capitalistas, vai ser empurrado para isso. Mas se as relações sociais de produção são outras, você consegue reinventar, de alguma maneira, nessa produção do espaço, relações sociais de produção diferenciadas, até influenciar a transformação. Então talvez não se trate mais nem de evolução nem de revolução, mas de transformação consciente. Eu gosto desse trechinho do Guy Debord: perspectivas da transformação consciente da vida cotidiana. São muitas, mas são limitadas.