Os anos 1980
No que se refere ao foco de atenção, duas mudanças significativas devem ser ressaltadas. A primeira, em relação
à importante análise crítica sobre as políticas
públicas habitacionais e os processos
de produção no canteiro de obras bem como as diretrizes do urbanismo
e das habitações do movimento moderno. A segunda, referindo-se às experiências dos projetos habitacionais internacionais da Argentina e de Cuba, e não
mais somente os da Europa.
A dimensão política da habitação é tratada em dois artigos. Em "A
política habitacional como mecanismo de acumulação e legitimação" (Projeto, 1985, n.77, p.104-106), o "elevado grau de participação
do Estado na provisão das condições gerais de produção e manutenção da harmonia
social" é ressaltado. Os argumentos trazidos da dissertação de mestrado do arquiteto Pascoal
Mário Costa Guglielmi, sintetizados neste artigo, demonstram que "a política
habitacional, refletindo a lógica desse Estado, longe de constituir-se num
mecanismo de enfrentamento do problema de carência de moradias, é utilizada
como implemento político a gerar renda e empregos no campo econômico
pela articulação de medidas de cunho social. Dessa forma, os insucessos experimentados
ao longo de seus vinte anos de existência podem ser atribuídos ao fato de
a produção habitacional não lhe ser o objetivo final, mas o meio pelo qual
se busca garantir os objetivos do Estado de garantir a acumulação (pelo carregamento
de recursos ao setor privado da economia) e a legitimação (pela abordagem
de uma questão popular central como a da casa própria)".
Já o artigo "Habitação
popular" (Módulo, 1984, n.81, p.53-57) apresenta a trajetória
das COHABs no Brasil e o caso específico de Belo Horizonte. O arquiteto Ralfo
Edmundo Matos distingue três períodos de atuação do órgão: a) do início de seu
funcionamento até 1969; b) de 1970 a 1974; c) de 1975 até 1980. Como conclusões
o autor faz as seguintes considerações: "somente em 1982 é que o total de unidades
vendidas pela COHAB em Belo Horizonte obteve um índice representativo, isto
é, 13% do total de habitações legalmente construídas em Belo Horizonte. Entretanto,
sabemos que a grande maioria das habitações são construídas clandestinamente.
Em Belo Horizonte, o volume de construções irregulares gira em torno de 70%
do total edificado. Raramente ocorre uma participação das unidades habitacionais
legalmente aprovadas acima de 40% do total de habitações construídas em Belo
Horizonte. Isto significa que, em termos de alojamentos populares, os esforços
realizados nas periferias urbanas (na forma de mutirão, auto construção, ou
empreitada), com base em pequenas poupanças arduamente acumuladas, são de longe
os principais responsáveis pela produção de habitação a nível de baixa renda."
Outra crítica, feita por Ermínia Maricato, refere-se às contradições entre os
equipamentos consumidos e a qualidade da construção e do espaço das moradias.
Seu artigo "Os
equipamentos da casa popular" (Módulo, 1982, n.69, p.28-30),
mostra que "o interior da casa popular revela, aos olhos de quem o analisa,
as contradições da vida doméstica, do universo ideológico, do padrão de consumo,
enfim do proletariado". E constata que "o padrão de consumo criado pelo tipo
de crescimento industrial adotado pelo capitalismo brasileiro a partir dos anos
50, que se combina contraditoriamente a uma situação de baixo poder aquisitivo
e de precariedade das condições de vida das massas trabalhadoras".
Tardiamente, mas em tempo, a necessidade do reconhecimento do favelado como "cidadão urbano completo"
é expressa pelo arquiteto Hartmut Thimel no artigo "Habitação
para população de baixa renda" (Módulo, 1984, n.81, p.66-69).
O autor propõe os esquemas de autocosntrução e mutirão como adequados "às aspirações
e condições sócio-cultural-econômicas da população".
Nada mais oportuno, nesse cenário, do que a presença da resenha do livro "O
canteiro e o desenho" (Chão - Revista de Arquitetura, 1980, n.8,
p.30-31), do arquiteto Sergio Ferro, escrita por Paulo Bicca. "Sérgio Ferro
nos mostra o ritual do projeto e o papel dos sacerdotes, sem os mistérios e
os paramentos que os representam sempre travestidos e os encobrem com o manto
da mistificação. Pela critica radical do projeto arquitetônico e suas
relações com o canteiro, Ferro desmistifica as relações existentes entre o conceber
e o construir. Ao romper com as visões fetichizadas e fetichizadoras da produção
da arquitetura, a sua crítica nos mostra os vínculos existentes entre o projeto
e o canteiro não como relação entre coisas, mas como relação entre trabalhos
socialmente distintos e antagônicos, medializados por coisas: trata-se,
no caso, do trabalho do arquiteto e das suas relações conflitantes com o trabalho
dos operários da construção". Bicca considera a abordagem de Ferro, uma 'revolução
teórica', no domínio da critica arquitetônica.
Ainda que outras críticas não tenham o caráter revolucionário
do livro de Sérgio Ferro, devem ser consideradas relevantes frente às restrições
políticas enfrentadas desde a época da ditadura. No artigo "As
Dimensões da Habitação" (Projeto, 1985, n.77, p.95-103), de Thereza
Christina Couto Carvalho, são discutidos subsídios para a análise do bom desempenho
dos conjuntos habitacionais. Em uma análise inicial destes, a autora revela
a "artificialidade, no que são conspícuos, nada tendo a ver com a paisagem da
cidade, que se organizou naturalmente", criticando a racionalização e imposição
"de um padrão de ordenação espacial, de cuja elaboração não participou, todavia,
a população diretamente atingida pelo empreendimento daí resultante". Em seguida,
demonstra que "a natureza peculiar dos conjuntos habitacionais parece manter,
por conseguinte, estreita relação com um processo de produção, que condiciona
a oferta de moradias aos critérios da economia de escala, reduzindo a possibilidade
de escolha e/ou participação do beneficiário final".
No artigo "Arquitetura
e Indústria" (Módulo, 1984, n.80, p.46-49), Roberto Pontual apresenta
a relação entre a indústria, o uso intensivo do cimento e o trabalho dos arquitetos.
"Propícia à indústria, a atualidade da arquitetura avança impulsionada por um
vasto confronto entra a auto-construção e a construção em cadeia. De um lado,
os supermercados de bricolage, cada vez mais frequentes e sofisticados nas grandes
cidades, oferecem a qualquer um todos os materiais e instrumentos necessários
à construção da própria casa. Ao mesmo tempo, não poucos arquitetos e urbanistas
- a exemplos de Walter Segal, Lucien Kroll, Doris e Ralph Thut, Christopher
Alexander - decidiram-se a abandonar a reclusão de seus gabinetes para trabalhar
em contato muito estreito com esse novo tipo de usuário construtor". Além da
apresentação de paradoxos vividos pela arquitetura, o autor demonstra que na
medida em a industrialização da construção não ocorre de fato, mas sim uma mecanização
de tarefas, uma outra gama de possibilidades para a habitação social surge,
entre elas, a autoconstrução.
Um outro importante questionamento sobre os conjuntos habitacionais é feito
no artigo "Cidade
funcional versus figurativa" (Arquitetura e Urbanismo, 1986,
n.9, p.64-66), a partir da constatação do arquiteto Carlos Eduardo Comas de
que "os conjuntos habitacionais endossam um paradigma de projeto da cidade funcional,
inspirado na Carta de Atenas". Embora essa constatação não seja de fato surpreendente,
permitiu a elaboração de uma comparação entre os aspectos morfológicos da funcional e da cidade, chamada por Comas, de figurativa. A hipótese do autor
é "trabalhar com a população a partir de dados significativos mais concretos",
derrubando a imagem do arquiteto "super-homem" veiculado pelo movimento moderno.
A "perda do caráter humanístico-ideológico da Arquitetura Moderna", apontado por Comas, bem como a "ausência
de reflexões críticas" dentro das escolas de arquitetura, são os pontos de partida
da entrevista com o arquiteto Jon Maitrejean, no artigo "Sem
(essa) estética" (Arquitetura e Urbanismo, 1986, n.7, p.44-45).
Maitrejean afirma que "a arquitetura existiu com intenção humanística nesses
40 anos mas não produziu nada significativo para o povo". As faculdades não
potencializaram a discussão da arquitetura, segundo o arquiteto, e aponta o
surgimento das revistas Projeto e AU como importantes nesse cenário acrítico
vivido até então.
Nesse cenário, exemplos da arquitetura argentina e cubana são buscados talvez
com o objetivo de tentar fazer brotar a crítica ainda incipiente aos anos modernistas.
O artigo sobre o "Conjunto
Habitacional Soldati" (Arquitetura e Urbanismo, 1986, n.9, p.50-52)
parte da constatação do grave problema habitacional na Argentina "onde aproximadamente
1/3 da população vive em habitações precárias". A fim de "evitar massificação
do conjunto e o efeito negativo sobre seus habitantes", o arquiteto Jorge Goldemberg
afirma ter procurado "individualizar as moradias, criando situações variadas
na estrutura ordenada e bastante econômica". Entretanto, o conjunto de unidades
de habitação, associado aos centros comerciais, escola e hospital, abrigando
uma população estimada em 24.000 habitantes, parece ter respondido muito mais
as premissas do movimento moderno. Para o conjunto de Soldati foram transferidas
populações que viviam em favelas próximas à Estação de Retiro e na zona onde
se erguia o Hotel Sheraton.
Diretamente de Buenos Aires, a correspondente Layla Y. Massuh, entrevistou o
historiador Félix Luna, o poeta e romancista Nicolás Cócaro e o arquiteto Juan
Molina e Vedia, em artigo "De
cinzas a diamantes" (Arquitetura e Urbanismo, 1986, n.7, p.80-81).
Uma importante conclusão é colocada como parte das reflexões de todo o texto:
"temos que ensinar nas nossas Faculdades que para fazer uma Arquitetura criativa
não se necessita alta tecnologia. Na busca da simplicidade dentro da qualidade
e de modelos ligados a nossa realidade está o caminho da arquitetura latino-americana".
No artigo seguinte, "Deslocando
o eixo" (Arquitetura e Urbanismo, 1986, n.7, p.82-83), Layla
Y. Massuh conversou com os arquitetos José Luis Bacigalupo, Francisco Garcia
Vazquez e Jorge Osvaldo riopedre sobre os problemas urbanísticos argentinos
e a proposta de desenvolvimento urbano para a Patagônia.
Na sequência, Lívia álvares Pedreira entrevista o arquiteto Roberto Segre sobre
os impasses da arquitetura cubana, intitulada "Para
uma reformulação" (Arquitetura e Urbanismo, 1986, n.7, p.84-87).
Referindo-se às possibildiades de sanar o problema da habitação, Segre afirma
que "no capitalismo, a tecnologia apropriada é uma tecnologia segregada através
da qual se tenta resolver problemas sem a participação econômica e industrial
do país". Entretanto, questiona a repetição da arquitetura vernacular ou a casa
do camponês com teto de duas águas como solução da habitação.
Com relação às propagandas de técnicas e materiais, estão presentes os módulos
metálicos, as telhas, blocos e uma discussão sobre o uso da madeira, em contraponto
com a intensidade de menções ao cimento e ao concreto armado. Na sessão "Memória"
da revista, o artigo "Vamos
construir com a madeira" (Módulo, 1985, n.87, p.20-21) apresenta
uma discussão sobre o uso desse material. O construtor José Zanine Caldas afirma
que o Brasil não aplica a madeira na construção, como deveria na medida em que
o país é uma "nação florestal", resultante de uma "campanha muito grande e mentirosa"
sobre o material. Não obstante, essa percepção deve estar aliada ao fato de
que o país tem promulgado o uso do cimento e a implantação de indústrias nacionais.
Zanine propõe o reaproveitamento deste material como matéria-prima para a autoconstrução
e afirma: "se esses 40% da nossa população que hoje vivem em condições subumanas
tivessem consciência de que podem construir uma boa casa em madeira, eles hoje
estariam vivendo melhor".
Os módulos metálicos foram apresentados no artigo "Rapidez
e baixo custo na habitação" (Projeto, 1984, n.61, p.49-53),
mas, de fato, aplicáveis em alojamentos, ambulatórios, escolas, sanitários
coletivos por meio de um módulo embrião, que pudesse ser fabricado em escala
industrial. Também no artigo "Módulo
Metálico" (Arquitetura e Urbanismo, 1988, n.20, p.112) o módulo
metálico UMA - Unidade de Móvel Autônoma - é apresentado para hospital, posto
de vacinação volante, unidades de pesquisa avançada, postos de fronteira,
escolas e alojamento em canteiro de obras". Como nos anos 1970, as propagandas
de pré-moldados - "Premo" (Arquitetura e Engenharia, 1989, n.161, p.1), e telhas de cimento amianto
- "Telhas
Eternit" (Módulo, 1982, n.72, capa interna), ainda comparecem.